Não somente arde Paris… (2019) Proletarios Internacionalistas

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Tradução em português: https://amanajeanarquista.blogspot.com/2022/01/nao-somente-arde-paris-proletarios.html

Não somente arde Paris…

Notas sobre os coletes amarelos

Introdução

Se há uma imagem que é costumeiramente repetida no movimento dos coletes amarelos é a de manifestações que rompem um cordão policial, ou expulsam a polícia de choque a pedradas, ou simplesmente organizam uma barricada de maneira a bloquear a via e saquear as lojas de luxo, enquanto de pulmões abertos, cheios de adrenalina, cantam com orgulho o hino La Marseillaise. É uma boa imagem para expressar a natureza confusa e contraditória do movimento. Em qualquer manifestação poderão ser encontradas reivindicações do Referendum de Iniciativa Cidadã (RIC) e da saída da União Europeia para defender a economia nacional, ao mesmo tempo em que algumas bandeiras francesas e regionais ondulam aqui e ali com certa parcimônia. Tudo isto convive no movimento com agressões constantes à propriedade privada através de saques e piquetes de greve, a criação de laços de solidariedade, a apropriação de espaços de encontro e associação proletária: em definitivo, o questionamento prático da democracia. Ao mesmo tempo, é visto em toda parte uma forte reivindicação da nação e de seus símbolos, dentre os quais a Revolução Francesa exerce ao mesmo tempo o papel de símbolo de orgulho patriota e de sublevação contra a tirania e a miséria.

Os coletes amarelos são – se alguém ainda duvidava – um movimento proletário. Como em todo movimento proletário, nele se expressa o proletariado realmente existente e o mundo que ele antecipa. O primeiro advém da confusão atual, de nossa fraqueza enquanto classe, da falta de memória que os vencedores nos expropriaram como vencidos. Porém, parte também da defesa instintiva, inevitável, de algumas necessidades que o capital deve negar para poder produzir-se. Esta defesa de suas necessidades empurra o proletariado a negar, por sua vez, ao capital e seu domínio sobre nossas vidas, e não somente nisso, já que nesse processo o proletariado também se nega, se reafirma como comunidade de luta contra sua própria existência isolada, cidadã, democrática. Esta contradição essencial ao capitalismo, inerente a sua própria reprodução, é o que determina a possibilidade da revolução. Faz dela algo material, físico, alheia as nossas vontades e consciências individuais. É assim que o proletariado antecipa em seu combate um mundo diferente, ao mesmo tempo em que segue arrastando uma parte da merda deste, que fará parte da base de sua própria derrota se não consegue superá-la no processo.

Seja como for, esta contradição não pode ser esquecida por nenhuma análise militante que postule seriamente as características do movimento, seus avanços, limitações e o papel que exercem nele as minorias revolucionárias. Há dois enfoques, duas caras da mesma moeda, que ressurgem geralmente nas análises que são feitas de nossa classe e que nos incapacitam de compreender essa contradição. O primeiro é idealista e reduz o movimento ao que diz e pensa de si mesmo, omitindo o que faz para continuar com a bandeira que agita e que abandona assim que a menor demanda socialdemocrata aparece em seus panfletos. O segundo é objetivista e pretende compreender a natureza do movimento a partir de sua composição sociológica. Com o bisturi na mão, toma indivíduo por indivíduo e o coloca em uma ou outra coluna de acordo com sua renda, sua posição no sistema produtivo, o bairro em que vive ou os estudos que teve. Uma vez desmembrado, costura tudo muito estatisticamente e pretende ver nisso a totalidade: temos aqui, sob esse prisma ideológico, um movimento pequeno-burguês que conseguiu cooptar um proletariado embrutecido em prol da defesa da economia nacional. Voilá: o movimento dos coletes amarelos. O necessário já foi dito.

Junto com esses enfoques, que geralmente vem combinados, apareceu nos últimos meses outro de caráter antifascista, que retoma a visão idealista e objetivista que acabamos de demonstrar para se indignar com tantas bandeiras francesas e tanta Marseillaise. Reduz o movimento aos grupelhos de extrema-direita que o cortejam e se recorda com nostalgia das boas procissões de antigamente, claramente das esquerdas, nas quais a CGT entregava os manifestantes encapuzados à polícia e os “insubmissos” mélenchonistas[1] empunhavam –ali sim, sem problemas- suas bandeiras francesas por uma nova república.

Felizmente, o movimento dos coletes amarelos é outra coisa. Agora é certo, que afirmemos o caráter proletário do movimento, apesar de todas as ideologia e bandeiras que flutuam entre seus protagonistas, não quer dizer que as mesmas não tenham importância ou que não serão determinantes no fim. Pelo contrário, partindo da prática real que determina o movimento e lhe confere seu caráter de classe, percebemos e criticamos todas essas forças do inimigo que atuam para prendê-lo, neutralizá-lo e dar-lhe uma direção que se contrapõe às mesmas necessidades e interesses que determinam o próprio movimento. Sem essa compreensão da realidade não se faz outra coisa a não ser projetar imagens distorcidas do movimento para reduzi-lo a um movimento pequeno-burguês, de classe média, cidadão, de defesa do “verdadeiro povo francês”, dirigido por grupos de direita, etc. Com certeza nós não iremos colaborar nessa projeção espetacular que se une com todos os esforços da burguesia em liquidar esse movimento. Nossa intenção é, justamente, contribuir em impulsionar a potência proletária que a luta dos coletes amarelos contém e denunciar todas as forças que criam obstáculos no desenvolvimento dela.

O que o movimento faz

No fim de outubro de 2018, começa a sentir-se um mal-estar geral pelo anúncio do governo Macron de uma subida dos impostos sobre a gasolina. Diante da tentativa da burguesia de fazer-nos pagar pela catástrofe ecológica e social na qual se baseia seu domínio, começam a produzirem-se bloqueios de estradas e piquetes organizados envolta das rotatórias. O movimento ecologista, uma corrente socialdemocrata onde quer que existam, chama a mudar o carro pela bicicleta se dói tanto o aumento do preço da gasolina. Claramente, ir trabalhar de bicicleta às seis da manhã e a 40 quilômetros de distância não é tão fácil. Tampouco é fácil fazer de bicicleta, no comércio mais próximo, que está a 10 quilômetros de distância, a compra do mês para toda uma família, mas isso não parece lhes incomodar.

O começo do movimento, centralizado pela primeira vez nas mobilizações de 17 de novembro, confunde todo mundo. A massividade das manifestações e dos bloqueios de estradas assusta a burguesia. As rotatórias convertem-se em lugares de reunião e discussão. Também se produzem as primeiras tentativas de separar o proletariado. Fala-se de uma revolta do campo contra a cidade, da pequena-burguesia das províncias – poujadista [2] por essência – contra a burguesia boêmia [3], da reação fanática do petróleo contra os ecólogos progressistas de boa fé e, com maior intensidade que todos os anteriores, dos brancos contra os negros e árabes, da France blanche-d’en-bas [4] contra a migração abarrotada nos subúrbios das grandes cidades. Ao mesmo tempo, tanto Le Pen como Mélenchon tentam capitalizar o movimento e declaram seu apoio – quando esse começar a desenvolver-se e chegar a seus picos de maior combatividade, se aterão a um silêncio desconfortante.

Mas os esforços são em vão. Se algo caracteriza esse movimento é sua vitalidade, sua capacidade de resistência ante a repressão física e ideológica, ao menos a mais direta. As seguintes manifestações ou “atos”, uma a cada sábado, serão verdadeiras manifestações proletárias – nem convocadas e nem convocáveis por nenhum aparato do Estado – que vão superar rapidamente a luta contra o imposto na gasolina. O movimento começa a generalizar-se. Começa a falar-se de uma vida muito cara, salários muito baixos, uma miséria e precariedade permanente que não deixam ninguém respirar e põem em dúvida a possibilidade de sobreviver neste mundo. Porém, não há só o falatório. Alguns bloqueios de rodovia tornam-se piquetes contra as grandes plataformas de distribuição de mercadorias, geralmente em consonância com uma parte dos trabalhadores. As primeiras manifestações produzem-se nos bairros mais ricos das grandes cidades e lhes convertem em cenários ideais para o ataque direto à propriedade privada. Na ilha La Réunion, “departamento ultramar” francês, a luta adquire uma intensidade maior, ainda que mais breve devido à maior repressão. Durante duas semanas os coletes amarelos fecharão o porto, gerando um desabastecimento na ilha que vem acompanhado de saques organizados e distúrbios, assim como do fechamento de comércios, escolas e universidades. A situação torna-se tão incontrolável que o governo tem de impor o toque de recolher e mandar o exército para acabar com a mobilização.

Frente às expressões racistas e anti-imigração que surgem no começo de uma parte do movimento, e que servem de megafones para os grupos de extrema-direita, as lutas em La Réunion vão dar um exemplo de unidade de classe por cima das raças. Depois das primeiras manifestações o Comité Adama Traoré [5] chamará a participar no Ato III, a manifestação de 1 de dezembro, que se converterá em uma batalha generalizada contra a polícia. Barricadas, saques, carros incendiados e ataques a comércios e bancos assolam os bairros ricos de Paris. O Arco do Triunfo, um dos maiores símbolos nacionais da República, é saqueado em seu interior e na sua fachada escreve-se: “Os coletes amarelos triunfaram”, “Macron renuncie”, “Aumentar a renda mínima” ou “Justiça para Adama”. É um escândalo completo. Ao mesmo tempo, as forças policiais atacam sem piedade os manifestantes. Somente nesse dia em Paris, atiram-se mais balas de borracha que no ano de 2017 inteiro. O número de feridos é 250, com vários olhos e mãos feridos e um homem em coma, além de mais de 300 detidos, uma cifra que aumentará a quase 2.000 no Ato IV. Depois desta manifestação, o movimento se estende aos colégios e vários deles são bloqueados pelos estudantes, especialmente na zona norte dos subúrbios parisienses. Durante as próximas semanas centenas de institutos serão paralisados ou pelo menos terão suas atividades seriamente perturbadas.

A cenoura e castigo. Em 5 de dezembro, Macron retira o aumento de imposto na gasolina e no dia 6 o ministro do interior, Castaner, anuncia que 90.000 policiais de choque serão mobilizados para o Ato IV, assim como tanques como os usados no despejo da ZAD em Notre-Dame-des-Landes. No dia seguinte um vídeo é espalhado no qual a polícia humilha algumas dezenas de estudantes de colégios em Mantes-La-Jolie, colocando-os de joelho com suas mãos atrás da cabeça. A repressão da manifestação de 8 de dezembro é tão brutal que cada vez mais se torna insustentável a estratégia do governo de distinguir os casseurs – os violentos – dos “bons e pacíficos cidadãos com coletes amarelos”. O movimento começa a organizar-se contra a repressão. Estendem-se as redes de apoio legal aos detidos e criam-se grupos de médicos de rua, pessoas com algum conhecimento de primeiros socorros que se distinguem na manifestação para ajudar os feridos. E o fato é que o movimento hoje, com três meses desde seu começo, conta com mais de 3.000 feridos, entre os quais se encontram várias dezenas de pessoas que tiveram o olho ferido por uma bala de borracha, ou que tiveram a mão arrancada por uma granada de atordoamento. O nível da repressão supera enormemente os limites do que se está acostumado na região europeia, e isso impulsionou um desenvolvimento massivo da solidariedade com os feridos. Em muitas manifestações, um grande número de pessoas leva bandagens nos olhos ou na cabeça com manchas de sangue falso, como forma de denúncia da violência policial.

Em 10 de dezembro, Macron anuncia um aumento do salário mínimo, que acaba sendo um aumento das ajudas a alguns trabalhos precários. No dia seguinte, produz-se um atentado em Estrasburgo, que é reivindicado pelo Estado Islâmico, o que Macron tentará utilizar como maneira a reprimir o movimento, pedindo que não houvesse manifestação naquele sábado e aproveitando a ocasião para incrementar a presença de forças policiais na rua. No entanto, continuam ocorrendo as mobilizações e o governo tem que desembolsar 300 euros de bônus para cada policial de maneira que não desistam de seu compromisso na repressão dos demonstradores, que oscilam entre enfrentamentos violentos com a tropa de choque e chamadas à solidariedade com o movimento.

Ao contrário das muitas vozes que anunciam o fim do movimento com a subida das ajudas e a retirada do imposto, assim como pela dura repressão e os milhares de detidos, os coletes amarelos não perdem sua vitalidade. O ano de 2019 começará com uma manifestação no dia 5 de janeiro, na qual vários manifestantes utilizam maquinaria de construção para derrubar a porta do ministério da Secretaria de Estado, podendo entrar no edifício e gerar diversos danos. O secretário de Estado tem de ser evacuado. Os sindicatos tentarão capitalizar com o movimento, chamando uma greve no dia 5 de fevereiro, mas a adesão será mínima e a presença dos coletes amarelos bem escassa. Dias depois, no sábado, dia 9 de fevereiro, convoca-se uma manifestação que retoma a linha de não ser comunicada às autoridades, de modo a combater a tendência à democratização e pacificação dos atos anteriores, os quais haviam correspondido com uma realocação para fora dos bairros ricos e uma diminuição nos saques. E funciona. Se qualquer coisa é repetida durante esse ato XIII é que, para serem escutados, o enfrentamento é necessário.

O movimento aprende. As seguintes demonstrações retornarão aos bairros ricos do leste parisiense e terão seu ponto de culminação no ato XVII de 16 de março. Essa convocação é feita durante o fim do “Grande Debate”, um processo de democracia participativa aberto por Macron para tentar – em vão – acalmar o movimento. No começo o “Grande Debate” é simplesmente um motivo para ridicularização, porém a essa altura já começa a tornar-se irritante. O ato XVIII tem como slogan “Ultimatum”, o qual adquire um sentido bem literal: Paris irá tornar-se o cenário de uma batalha generalizada como não se havia visto até então. Tenta-se novamente tomar o Arco do Triunfo, e quando a polícia consegue impedir a raiva proletária dirige-se contra as lojas de luxo e restaurantes nos Champs-Élysées, que arderão durante toda a noite.

A burguesia também aprende. A situação estará tão incontrolável que Macron, dias depois, depõem o chefe da polícia e coloca em seu lugar Didier Lallement, bem conhecido por suas habilidades repressivas. Ao mesmo tempo, a polícia de choque é reforçada com soldados da Operação Sentinela, um corpo militar criado após o ataque a Charlie Hebdo em janeiro de 2015 e especializado na luta contra o terrorismo. Daí em diante, toda manifestação produzida nas proximidades dos Champs-Élysées é proibida e duramente reprimida. Contudo, e ainda que a presença da polícia aumente nas ruas e a repressão recrudesça, nas semanas seguintes chama-se um 1º de maio “amarelo e negro”, em referência à ação conjunta de coletes amarelos e do black bloc, e Paris tornará a arder. Atualmente o número de detidos se eleva a 8.700 pessoas –segundo o Ministério do Interior – e quase 2.000 condenados, dos quais por volta de 40% com cumprimento de tempo em prisão. A isso é preciso somar a colocação em prática da lei anti-casseurs, que escandaliza até mesmo algumas frações da burguesia ao permitir detenções preventivas das pessoas suspeitas de poderem cometer um crime – um aceno horrível ao filme Minority Report – A Nova Lei – durante a demonstração.

Claro que toda esta revolta não surge de nada novo, nem é uma criação única e absolutamente espontânea dos coletes amarelos. Na verdade, a forte combatividade e a capacidade de resistência e apoio mútuo que demonstra o movimento provêm de um aprendizado prévio do proletariado na França. Assim, mantem-se vivas a recordação da revolta dos banlieues de 2005 e as formas de organização que se desdobraram naquele momento [6]. Por outro lado, as lutas contra as Reformas Trabalhistas em 2016 geraram uma série de experiências e aprendizagens ao interior dos black blocs que não são subestimadas, ao mesmo tempo em que se abriam às pessoas que não haviam participado antes e faziam-se chamadas as militantes de outros países como Alemanha ou Itália a juntarem-se a algumas convocatórias, como foi o caso do 1º de maio de 2018 [7].

Paralelamente, no curso destes meses vai-se além das rotatórias e formam-se assembleias por todo o país. As de Saint-Nazaire e Commercy vão funcionar como motor desse processo, fazendo várias chamadas à criação de assembleias e à apropriação de espaços de encontro e associação proletária, fundamentais não somente para discussão e reflexão comum, mas também para construção de laços de solidariedade com os detidos e feridos. Ao mesmo tempo e diante da necessidade de mecanismos de centralização do movimento, inicia-se um processo de coordenação entre distintas assembleias que dará lugar a uma “assembleia de assembleias” no fim de semana do dia 26 e 27 de janeiro, e uma segunda doa dia 5 ao 7 de abril.

O que o movimento diz

O que o movimento diz e pensa de si mesmo é heterogêneo e confuso. Isso é natural e revela seu caráter massivo e genuíno, ao mesmo tempo em que revela a situação de fraqueza que partilha nossa classe nesse período. A ausência de memória proletária e a força atual do cidadanismo faz com que os coletes amarelos se identifiquem mais como o povo contra “os de cima” do que como proletariado contra a burguesia e seus cães. Isso não lhes impede de lutar como tal, como vimos, já que seu próprio desenvolvimento empurra-lhes ao enfrentamento com o Estado e a propriedade privada, porém, sem dúvidas, é uma bandeira que pesa sobre nossas cabeças e que abre as portas às distintas formas de recuperação burguesa.

Ao mesmo tempo, é importante não fazer um bloco homogêneo a partir da ala majoritária do movimento, esquecendo toda luta ao interior do mesmo para clarificar e impor nossos interesses. Sem dúvida a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, inclusive em um processo de luta contra essa mesma classe. Contudo, a vitalidade de um movimento mede-se também pelas minorias que tentam demonstrar e combater as armadilhas da (social)democracia, ao mesmo tempo em que aprofundam a radicalidade do próprio movimento contra o sistema. Por isso é importante destacar vozes como as dos coletes amarelos de Paris Leste, onde se diz claramente que:

“Não somos a “comunidade de destino”, orgulhosa de sua “identidade”, cheia de mitos nacionais, que não foi capaz de resistir à história social. Não somos franceses.

Não somos essa massa de “gente humilde” disposta a juntar-se com seus amos enquanto forem “bem governados”. Não somos o povo.

Não somos este conjunto de indivíduos que devem sua existência somente ao reconhecimento do Estado e a sua perpetuação. Não somos cidadãos.

Nós somos aqueles que são obrigados a vender sua mão de obra para sobreviver, aqueles dos quais a burguesia obtém a maior parte de seus benefícios dominando-nos e explorando-nos. Nós somos os pisoteados, sacrificados e condenados pelo capital, em sua estratégia de sobrevivência. Somos essa força coletiva que abolirá todas as classes sociais. Somos o proletariado” [8].

Porém, antes disso, se há algo que caracteriza os coletes amarelos positivamente é seu rechaço a toda forma de representação. Este é de fato um dos fatores que nutre sua vitalidade como movimento. Em primeiro lugar, o rechaço aos grandes meios de comunicação é total. Denuncia-se seu papel na propaganda ideológica do governo e produzem-se enfrentamentos e inclusive expulsões dos jornalistas dos grandes meios que se deixam ser vistos nas demonstrações.

Ao mesmo tempo, há uma profunda recusa à representação política e sindical. O rechaço aos sindicatos é tão mais notável porque eles têm um grande peso na política francesa. Nos últimos anos de mobilizações, nunca se havia visto tal deslegitimação, embora a criação de cortèges de tête nas lutas contra a Reforma Trabalhista em 2016 vinha anunciando uma busca de autonomia em relação a eles, embora de forma minoritária. Isso é certo mesmo se a declaração da greve “geral” por parte da CGT em 5 de fevereiro, como uma tentativa de canalização sindical da luta, teve apoio por parte das vozes mais visíveis do movimento. A greve da CGT pôs em evidente contradição àqueles que haviam anteriormente rejeitado a presença dos sindicatos e agora davam boas-vindas à suas convocações como se elas fossem uma maneira de estender a luta ao local de trabalho. No entanto, como dissemos antes, a greve teve pouquíssima adesão e o número de coletes amarelos no passeio sindical dessa tarde foi bastante escasso. Nas manifestações os sindicatos, com exceção do esquerdista SUD-Solidaires, e esse timidamente, não se atreviam a aparecer com faixas ou adesivos. De fato, há poucas faixas pré-fabricadas, e as diferentes reivindicações que cada colete amarelo decide escrever nas costas com um simples marcador cumprem sua função. A necessidade de defender a autonomia do movimento está muito presente entre os manifestantes e as tentativas de capitalizá-lo politicamente têm sido um verdadeiro fracasso, assim como a inscrição de uma “lista eleitoral dos coletes amarelos” para as eleições parlamentares europeias ou a organização dos governos municipais para recolher “cadernos de queixas” – um aceno aos cahiers de doléances da Revolução Francesa – com o objetivo de organizar o “Grande Debate”.

Porém, essa rejeição de representação tem sua contrapartida. Apesar de conter esse cordão sanitário contra o enquadramento burguês clássico, ela contém ao mesmo tempo uma negação da comunidade de luta, de nosso ser proletário coletivo. Ela não deriva da comunidade de luta, mas do indivíduo isolado que representa a si mesmo e, portanto, nega a expressão coletiva e suas distintas formas de materialização. É o terreno que dá abertura para a democracia, especialmente a democracia direta. Esconde, de um lado, a ideia de que somente o indivíduo pode representar-se a si mesmo e de que, no fundo, a única maneira de organizar esse conjunto de indivíduos isolados é com formas de democracia direta, votações, processos formais examinados aos detalhes, reivindicações vazias para que nenhum indivíduo fique de fora: em definitivo, se expressa no assembleísmo mais limitante para a ação do movimento. Doutro lado, esta rejeição encontra sua expressão ideológica em um discurso populista pelo qual o povo tem de fazer valer sua soberania ao refundar uma nova forma de democracia. É aqui onde o Referendum de Iniciativa Cidadã mostra-se como um excelente instrumento de recuperação. “Adeus à guerra dos egos e à guerra de poder. Com o RIC ninguém mais tem o poder, é toda a população que o possui”, diz Maxime Nicolle, um dos quais a imprensa declarou “líder” do movimento. Se a ideologia democrática é em si mesma uma das forças burguesas mais arraigadas, uma das últimas barreiras que teremos de superar no processo de constituição de classe, esta ganha nova energia no contexto de debilidade em que nos encontramos, na dificuldade de reconhecermo-nos como proletários e de sentirmo-nos uma só classe a nível mundial. Assim, a defesa democrática da soberania vê-se reforçada na identificação da catástrofe capitalista com o “fenômeno da globalização” e o recuo nacionalista que é dado como resposta por parte da socialdemocracia, seja mais a direita ou mais a esquerda [9].

Apesar da presença majoritária presença do RIC, não quer dizer que não existam vozes que avisam do risco de recuperação que contém. Assim o fazem, por exemplo, os coletes amarelos de Toulouse ao falar de “RICuperação” em seu periódico Le Jaune [O amarelo]:

“O RIC aproveitou essa ilusão. Há de se dizer que, a primeira vista, a proposta era atrativa. Dizia-nos que, com isso, finalmente poderíamos ser escutados diretamente, que poderíamos recuperar o poder sobre nossas vidas. Nós decidiríamos tudo. E mesmo sem lutar, sem arriscar a vida nas rotatórias e nas manifestações, somente votando, nos nossos computadores em nossas salas de estar, usando pantufas e próximos de uma aconchegante lareira! Mas no comércio, quando se tem um produto para vender, mente-se: “Sim, assim que tivermos o RIC, poderemos conseguir tudo”. Isso é falso. Para começar, pedir a burguesia sua opinião para saber se estão de acordo com aumentar nossos salários!, é o cúmulo! Um voto contra os interesses dos capitalistas como, por exemplo, o aumento do salário mínimo por hora seria simplesmente rechaçado. Lembremo-nos do referendum de 2005 [sobre a Constituição Europeia]. E isso sem mencionar a intensa propaganda que sofreríamos se votássemos contra, sozinhos na frente de nossas telas” [10].

O peso do nacional-popular no movimento, um complemento necessário de um discurso democrático, reflete-se na ausência de sua consciência internacionalista. É paradoxal, já que os coletes amarelos foram retomados por proletários de outros países para expressar sua própria luta contra as condições de miséria existentes. Isso ocorreu especialmente na Bélgica, onde a identificação é mais imediata pela proximidade territorial e linguística, porém também no Egito, onde o governo, temeroso de uma extensão do movimento, teve de proibir a venda de coletes amarelos diante do chamado realizado por diferentes grupos para celebrar o aniversário da revolta de 2011 vestidos de coletes amarelos para expressar que é uma mesma luta. Também apareceram coletes amarelos durantes os protestos em Bulgária e Sérvia – igualmente contra o aumento da gasolina – e os do Iraque, que se iniciaram pela intoxicação de dezenas de milhares de pessoas devido à má purificação da água. Contudo, em lugares como Alemanha, Holanda ou Espanha os coletes amarelos foram usados por grupos de extrema-direita – e também por alguns grupos socialdemocratas – sem muito êxito de mobilização. Nesse contexto, apesar da natureza internacionalista do movimento, que é reconhecida por proletários de outras regiões do mundo, o movimento francês parece reorientado em si mesmo, em seu plano nacional, e as referências ao proletariado de outros países brilham por sua ausência, ao contrário do que ocorreu durante a onda internacional de lutas de 2011-2013.

Isto permite contextualizar a convivência – que com o decorrer da mobilização tem diminuído – no movimento com grupos de extrema-direita, junto com as expressões iniciais racistas e contra a imigração. Embora, atualmente, a presença dessas forças seja muito relativa, inflada pela propaganda que lhes dá a imprensa, esse não é o caso das chamadas pela defesa da indústria e comércio nacional, simbolizadas pelo pequeno comércio, e transmitidas pelo chamado a um Frexit. Nessas, onde muitos veem o peso da classe média ou da pequena burguesia, que estaria dirigindo o movimento ou, ao menos, conseguindo introduzir suas próprias reivindicações, nós não vemos senão um proletariado que apenas desperta e que demonstra ao mesmo tempo –um sinal de nossa época – uma clara capacidade de auto-organização e de enfrentamento com o Estado e a propriedade privada, e uma enorme dificuldade para reconhecer-se a nível mundial em uma classe contra um só inimigo: as relações sociais capitalistas encarnadas e defendidas pela burguesia [11].

Porém, de novo, ao interior do movimento ocorre uma luta contra essas tendências nacionalistas, de tal forma que no curso dos últimos meses cada vez são mais fracas, e cada vez mais se pode ouvir mais vozes que reivindicam a natureza internacional do proletariado. Assim, por exemplo, no final de dezembro celebrou-se uma assembleia de centenas de pessoas em Caen, em um edifício ocupado por imigrantes não documentados durante a greve dos ferroviários de 2018, em uma clara identificação da luta dos coletes amarelos e o proletariado imigrante contra o mesmo Estado e o mesmo sistema capitalista. De outro lado, Le Jaune adverte em seu segundo número contra as tentativas de separar o proletariado:

“Depois vem outros proporem-lhe soluções para gerir a crise que acabam esmagando os proles que vem de fora para continuar explorando aos daqui: gestão dura dos fluxos migratórios (feito), caça aos não documentados dentro do território (feito), Frexit, etc. Propõem-nos que nos tranquemos com chaves duplas e que bloqueemos a porta, como se o lobo capitalista não estivesse já entre as ovelhas francesas. Quando se propõem uma resposta nacional a um problema mundial é porque se está preparado para defender-se à custa do resto dos galerianos dessa Terra, e isso é precisamente o que os capitalistas do mundo todo esperam de nós nesses tempos tumultuosos: estarmos divididos e sermos controláveis” [12].

Ainda assim, embora isso tenha um papel que não pode ser subestimado nas limitações do movimento, é a própria democracia que, de uma forma imediata, apresenta-se como o principal fator de recuperação. Pode-se ver uma amostra disso com o efeito gerado pela legalização das manifestações, que começou a acontecer a partir do Ato IX (12 de janeiro), já que até então as convocatórias eram espontâneas e anônimas. A legalização supõe que tem de haver pessoas responsáveis ante as autoridades pelos danos produzidos nela, por isso mesmo os próprios convocadores tem um vivo interesse em pacificar e manter a ordem durante a manifestação. Além disso, isso obriga os coletes amarelos a seguir um trajeto previsto e conhecido pela polícia e a estabelecer um serviço de ordem. Como já dissemos antes, empurradas pela ala mais democrática do movimento, as manifestações em Paris irão deslocar-se dos bairros ricos do leste, salvando as lojas de luxo das expropriações proletárias, mas também afastando os manifestantes dos símbolos do poder, como o Élysées ou a sede patronal. Nessas demonstrações, a ideologia cidadã começa a pesar e os próprios manifestantes viram-se contra os grupos que quebram as vidraças ou até mesmo pintam elas.

Esta tendência do movimento a apagar-se democraticamente, contudo, foi contestada pouco depois pelo Ato XIII (9 de fevereiro), que, como já explicamos, foi convocado com a vontade explícita de romper com esta tendência à legalização, ou seja, de não declarar o trajeto à polícia e nem ter convocadores legais, nem serviço de ordem, assim como para voltar aos bairros ricos em uma nova retomada de combatividade. A partir de janeiro e nos meses que seguem, os coletes amarelos viverão fluxos e refluxos que expressarão com toda claridade tanto um caráter mais combativo e de negação da ordem estabelecida, como momentos de pacificação e democratização nos quais a ala majoritária que descrevíamos antes consegue impor-se.

No mesmo terreno de canalização democrática, outro dos riscos do movimento é que se deixe prender por uma ideologia assembleísta. O processo de criação de assembleias e suas tentativas de coordenação são muito positivos, já que respondem a uma necessidade do movimento de dotar-se de estruturas de associação mais estáveis, defender-se da repressão, pensar juntos e criar mecanismos de centralização de escala nacional. Geralmente isso implica, como no caso de Saint-Nazaire, na ocupação de espaços para reunir-se e fazer as assembleias. Contudo, a pressão por fornecer reivindicações concretas, unanimemente refletidas em um papel que representa os coletes amarelos a nível nacional, pesa sobre este esforço de centralização e pode ter o efeito, finalmente, de retirar os demonstradores das ruas de maneira a discutir por horas sobre a maneira de formular uma frase que represente todo mundo. O papel positivo que a organização consciente de debates e discussões desempenha no interior de um movimento não deve ser subestimado de nenhuma maneira, mas é realmente necessário reconhecer que a separação entre a palavra e o feito, a burocratização das assembleias e as acrobacias verbais para fornecer uma ampla representação, implicam na morte dessas assembleias como expressões organizacionais do movimento e sua passagem à contrarrevolução. De fato, é com esse tipo de sentimento que muitos coletes amarelos saíram da segunda “assembleia das assembleias” (5-7 de abril), onde a unidade de ação que se expressa nas manifestações viu-se completamente diluída, e tudo se converteu em malabarismos para criar algumas folhas de demandas concretas onde “há espaço para todo mundo”.

Algumas perspectivas provisórias

As tarefas e atividades que assumimos como revolucionários não estão inscritas nem baseadas em possibilismos, mas vem determinadas pelas próprias necessidades – imediatas e históricas – da luta de nossa classe. Somos conscientes que o mais provável é que o movimento dos coletes amarelos seja liquidado, seja porque todos os limites que criticamos acabem apoderando-se do movimento, ou pelo próprio desgaste e recuo dos protagonistas. No entanto nosso atuar consciente e voluntário pela revolução social, pela abolição do capitalismo, impulsiona-nos a assumir esse movimento como mais um pequeno episódio na luta histórica contra o capital. E no seio de todos esses episódios as minorias revolucionárias são as que tratam de impulsionar o movimento até suas últimas consequências.

Este pequeno texto faz parte desse impulso, como uma necessidade de nossa classe de fazer o balanço dessa luta, de expressar sua verdadeira ação frente às falsificações de todos os porta-vozes do capital, de demarcar e contrapor-se a todas as forças de nosso inimigo, de aprofundar nas forças e limites que temos.

Se há algo de peculiar nesse movimento é que vem marcando certa mudança nas características das lutas dos últimos anos. Desde Argentina à Grécia, desde o norte da África à própria França, de Brasil aos subúrbios dos Estados Unidos etc., temos vivido diversos momentos de lutas importantes com a característica comum que se apresentavam como fortes erupções que cessavam rapidamente. O proletariado saía violentamente à rua empurrado pela agudização da catástrofe capitalista e se contrapunha com fúria aos inimigos mais visíveis do capital, porém passados os primeiros momentos, os primeiros dias, as primeiras semanas, quando já não bastava o instinto de classe, quando não se sabia muito bem como prosseguir, a burguesia apresentava todo tipo de medidas – alternância política, gestionismo, repolarização entre frações burguesas, repressão, guerra imperialista…– que restabeleciam a ordem. É certo que estas medidas de apaziguamento encontravam maior resistência por parte do proletariado, porém não ao nível de resistência e permanência dos protestos dos coletes amarelos depois de setes meses do início do movimento. Com fluxos e refluxos o movimento resistiu até agora à repressão, as diversas tentativas de canalização e não se deixou seduzir com migalhas que vem sendo oferecidas pelo Estado francês.

Em contrapartida, a burguesia, que até então era capaz de encerrar as lutas em seus Estados nacionais, vê como estão se rompendo esses muros de contenção que lhe permitiam enfrentar as lutas parte por parte. É certo, como dizíamos que o proletariado na França tem muitas dificuldades para assumir explicitamente o caráter internacionalista de sua luta, contudo em outras regiões do mundo a identificação com a luta dos coletes amarelos expressa abertamente esse caráter internacionalista. Essa realidade mostra claramente que as condições de vida do proletariado mundial tendem a homogeneizarem-se à medida que avança a catástrofe capitalista. Porém, o processo acabou de começar.

É óbvio que, como dizíamos em um texto de alguns anos atrás, hoje é de uma importância capital que as minorias proletárias daqui e dali avancem nesse indispensável processo de coordenação e centralização internacional, que quebremos as divisões país por país, ou pior ainda, cidade por cidade. Por isso temos que reconhecer que nunca foi tão minúscula a força das minorias revolucionárias, que nunca o proletariado teve tanta desorientação, que nunca houve uma contraposição tão grande entre a necessidade de revolução e a incapacidade de assumir essa necessidade. É evidente que dar a volta nessa situação é uma necessidade vital para a perspectiva revolucionária.

De qualquer maneira, esta fora de questão que o movimento dos coletes amarelos faz parte de um processo de despertar de nossa classe a nível internacional, após a derrota da onda de lutas dos anos 70. Diante da perspectiva factível de que esse movimento morrerá cedo ou tarde, se uma recuperação burguesa à altura e intensidade vivida e atingida por ele não for produzida, ele deixará para trás novos laços de solidariedade, talvez algumas estruturas, experiências de luta das quais derivar lições, um novo número de pessoas que, após sua radicalização no movimento, serão aderidas à atividade das minorias revolucionárias apesar do retorno à normalidade. Nossa classe aprende. Ela constrói sua própria memória. Ela desperta.

Não esperaremos sentados por um suposto proletariado metafísico que, liberado de todo pecado terreno, puro no mais profundo de sua alma, saia à rua para anunciar o fim do capitalismo e a chegada de um novo mundo. Não esperamos tampouco que o próprio capitalismo devore a si mesmo para poder gerir o desastre. Deixemos essas profecias religiosas para todos os militantes devotos, para todas as sagradas famílias da esquerda e extrema-esquerda do capital. O proletariado não descerá do céu, o capitalismo não se abolirá a si mesmo, senão que, como sempre, de vez em quando, a alternativa revolucionária aparece e aparecerá na luta de nossa classe, intoxicada pela nocividade capitalista, por todo o veneno que segrega essa sociedade. Nesse combate contra tudo o que nos impede de viver, contra tudo o que nos impossibilita afirmarmo-nos como ser humano, como comunidade humana, onde os pulmões podem tomar um pouco de oxigênio entre tanta poluição e onde a comunidade humana se prefigura como comunidade de luta frente à comunidade do dinheiro. O proletariado está forçado a destruir o capitalismo pela raiz se não quiser que esse destrua todo nosso mundo. Esse proletariado profano e corrompido não descerá do céu, porém tomará o céu de assalto.

Consequentemente, nós atuamos e compelimos todos os companheiros e grupos a defenderem nossos interesses de classe e a combater o enquadramento burguês nesses protestos; à estruturação e organização contra todas as tentativas de canalização democráticas e nacionalistas; a fortalecer e estender os contatos entre nós, a criar redes organizativas em todos os níveis; estruturas para defender-nos da repressão e para discutir sobre como assumir tal ou qual tarefa.

28 de Maio de 2019

Proletarios Internacionalistas
http://www.proletariosinternacionalistas.org
info[arroba]proletariosinternacionalistas.org

“Nossos coletes já não são trajes de segurança rodoviária, senão que se transformaram em um sinal de união para aqueles que desafiam globalmente a ordem vigente. Se cintilam, não é para alertar às autoridades de alguma emergência ou mal-estar social. Não os usamos para exigir algo ao Poder. O amarelo de nossos coletes não é o amarelo que o movimento dos trabalhadores costuma atribuir à traição. A cor desta peça de roupa é a da lava da ira que o vulcão da revolução social, inativo durante muito tempo, está começando a expelir de novo. É amarelo somente porque abraça o vermelho. Sob este nome de “coletes amarelos”, um titã apenas desperta, ainda atordoado do coma em que esteve imerso durante mais de quarenta anos. Este colosso já não sabe seu nome, já não recorda sua gloriosa história, e já não conhece o mundo onde está abrindo seus olhos. Contudo, na medida em que se reativa, descobre a magnitude de seu próprio poder. Sussuram-lhe palavras os falsos amigos, carcereiros de seus sonhos. Repete-as: “francês”, “gente” e “cidadão”! Porém, ao pronunciá-las, as imagens que regressam confusamente das profundades de sua memória semeiam uma dúvida em sua mente. Essas palavras têm sido utilizadas nas sarjetas da miséria, nas barricadas, nos campos de batalha, durante as greves, nas prisões. Porque estão na linguagem de um adversário formidável, o inimigo da humanidade que, há séculos, gerencia com maestria o medo, a força e a propaganda. Esse parasita mortal, esse vampiro social, é o capitalismo! […]

Nós somos os pisoteados, sacrificados e condenados pelo capital, em sua estratégia de sobrevivência. Somos essa força coletiva que abolirá todas as classes sociais. Somos o proletariado.” [13]


[1] Referência ao movimento França Insubmissa, liderado atualmente por Jean-Luc Mélenchon. Estender mais sobre isso.
[2] Movimento conservador e corporativista de pequenos comerciantes, liderado por Pierre Poujade nos anos 50, que protestavam contra a extensão de grandes espaços comerciais. Jean-Marie Le Pen viria a se tornar um deputado poujadista antes de fundar o Front National.
[3] Do francês bourgeois bohème, “burguês boêmio”, que faz referência à burguesia progressista e cultivada das cidades.
[4] A “França branca de baixo”, o lixo branco francês.
[5] Trata-se de um grupo organizado contra a violência policial nas banlieues, com um discurso próximo ao racialismo. Tem seu nome em memória de Adama Traoré, um jovem de 24 anos que em 2016 foi assassinado pela polícia enquanto estava detido.
[6] Ver nosso livro La Llama del subúrbio [A chama do subúrbio] em www.proletariosinternacionalistas.org.
[7] Dizemos isso sem esquecer todas as limitações que têm os black blocs, como uma prática militante hiperespecializada que, ao dar muita importância à confrontação física com a polícia, cai facilmente no espetáculo da violência –vazia de conteúdo de classe e, portanto, facilmente recuperável-, como temos presenciado nas sucessivas contra cúpulas das últimas duas décadas –ver ao respeito o artigo “Contra las cumbres y anticumbres” da revista Comunismo nº47 em https://drive.google.com/file/d/1lF2FiBkCLyTZCrJcU8Qmq8qTgfUX1UFC/view?usp=sharing. Assim também é advertido por um panfleto distribuído durante o 1º de maio deste ano: os saques, os ataques à propriedade urbana, o enfrentamento com a polícia, “nada mais normal e lógico, nada mais são e saudável, e incluso seria desanimador se não ocorresse. Porém, também seria desanimador (por outros motivos, certamente), assim como danoso para a continuação do movimento de oposição à ordem de coisas presente, que simplesmente ocorresse isso e que acabasse ali, que nos limitássemos a uma violência de classe que poderia transformar-se em espetáculo da violência, que não fossemos mais longe, que não aprofundássemos a ruptura, o abismo que nos separa deles, nós, a humanidade em luta e eles, os capitalistas e seu mundo, feito de miséria, de exploração, de guerra e de sofrimento” (“Coletes amarelos (ou não). Por um 1º de maio combativo. Ação direta anticapitalista” em: https://lille.indymedia.org/IMG/pdf/gilets_jaunes_ou_pas_mayday.pdf).
[8] Texto retirado de Guerra de Clases nº9, inverno de 2018-2019: https://www.autistici.org/tridnivalka/category/other-languages/espanol/.
[9] Veja o texto de Barbaria, “Más allá de la extrema derecha” [Além da extrema-direita] em: http://barbaria.net/2018/12/20/mas-alla-de-la-extrema-derecha/.
[10] O texto original pode ser encontrado em: https://jaune.noblogs.org/files/2019/01/Jaune1-web.pdf e sua tradução ao castelhano no número mencionado mais acima de Guerra de clases.
[11] Dizemos isso não porque a pequena-burguesia não exista como “classe” sociológica, senão porque esta jamais cumpriu o papel de classe no sentido de movimento histórico, de força social, de partido. As duas únicas forças sociais são burguesia e proletariado, revolução e contrarrevolução, constantemente contrapostas como os dois polos da contradição capitalista.
[12] Esse texto em francês pode ser encontrado em: https://jaune.noblogs.org/files/2019/02/Jaune-2.pdf.
[13] Texto retirado de Guerra de Clases nº9, inverno de 2018-2019: https://www.autistici.org/tridnivalka/category/other-languages/espanol/.

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