Entender a revolta no Cazaquistão

ǀ English ǀ Español ǀ Français ǀ Italiano ǀ Português ǀ Русский ǀ

  • O Levante no Cazaquistão (CrimethInc.)
  • Revolução Colorida ou revolta proletária? (Zanovo Media)
  • Protestos no Cazaquistão: 5 pontos-chave para entender o que está acontecendo (Communia)
  • Cazaquistão Depois do Levante (CrimethInc.)

Apresentação da Guerra de Classes

Depois do acúmulo de experiências nos últimos anos e especialmente ao longo de 2021, com as greves em Zhanaozen por exemplo, a classe trabalhadora se levanta no Cazaquistão, com uma revolta massiva desencadeada pelo aumento em 100% no preço do gás combustível (que eles mesmos produzem), o que acarretaria um aumento em todos os viveres. Com o desenrolar dos protestos, as exigências expandem-se.

Apresentamos abaixo uma série de textos militantes que dão alguma descrição dos acontecimentos e podem dar uma ideia do que aconteceu no Cazaquistão. A publicação destes textos não significa de modo algum a nossa adesão a todas as análises neles desenvolvidas e muito menos às posições programáticas dos grupos e indivíduos que os produziram.

O Levante no Cazaquistão
Uma Análise e Uma Entrevista

Fonte: https://pt.crimethinc.com/2022/01/07/o-levante-no-cazaquistao-uma-analise-e-uma-entrevista/

ǀ Deutsch ǀ English ǀ Español ǀ Français ǀ Italiano ǀ Polski ǀ Русский ǀ 中文 ǀ

Uma revolta de grande escala estourou no Cazaquistão em resposta ao aumento do custo de vida e à violência do seu governo autoritário. Manifestantes tomaram prédios do governo em muitas partes do país, especialmente em Almaty, a cidade mais populosa, onde ocuparam temporariamente o aeroporto e incendiaram o palácio do governo. Enquanto publicamos isso, a polícia recapturou o centro de Almaty, matando pelo menos algumas dezenas de pessoas no processo, enquanto tropas da Rússia e da Bielorrússia chegam para se juntar a eles na supressão dos protestos. Devemos às pessoas que enfrentam essa repressão saber por que elas se levantaram. No relato a seguir, apresentamos uma entrevista com uma expatriada do Cazaquistão que explora o que levou as pessoas à revolta no Cazaquistão — e explora as implicações dessa revolta para a região como um todo.

“O que está acontecendo agora no Cazaquistão nunca aconteceu aqui antes.

“A noite toda houve explosões, violência policial contra pessoas e algumas pessoas queimaram viaturas, incluindo alguns carros aleatórios. Agora as pessoas estão marchando pelas ruas principais e algo está acontecendo perto de Akimat (o prédio do parlamento).”

— Última mensagem que recebemos de nossa camarada no Cazaquistão, uma anarcafeminista em Almaty, pouco antes das 16h (horário do Leste do Cazaquistão) em 5 de janeiro, antes de perdermos contato.

Devemos entender a revolta no Cazaquistão em um contexto global. Não é simplesmente uma reação a um regime autoritário. Os manifestantes no Cazaquistão estão respondendo ao mesmo aumento do custo de vida que as pessoas vêm protestando em todo o mundo há anos. O Cazaquistão não é o primeiro lugar onde um aumento no custo do gás desencadeou uma onda de protestos — exatamente a mesma coisa aconteceu na França, Equador e em outras partes do mundo, sob uma ampla gama de administrações e formas de governo.

O que é significativo sobre esse levante em particular, então, não é que seja sem precedentes, mas que envolve pessoas que enfrentam os mesmos desafios que todas nós enfrentamos, onde quer que vivamos.

A urgência com que a Rússia está se movendo para ajudar a suprimir o levante também é significativa. A Organização do Tratado de Segurança Coletiva [CSTO], uma aliança militar composta pela Rússia, Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão — com a Rússia dando as ordens — se comprometeu a enviar forças para o Cazaquistão. Esta é a primeira vez que o CSTO envia tropas para apoiar uma nação membro; recusou-se a ajudar a Armênia em 2021, durante seu conflito com o Azerbaijão.

É instrutivo que a guerra entre a Armênia e o Azerbaijão não justificasse a intervenção do CSTO, mas que uma poderosa onda de protesto sim. Como em outros projetos imperiais, a principal ameaça à esfera de influência russa (a “Russosfera”) não é a guerra, mas a revolução. A Rússia lucrou consideravelmente com a guerra civil na Síria e a invasão turca de Rojava, jogando a Síria e a Turquia uma contra a outra para ganhar uma posição segura na região. Uma das maneiras pelas quais Vladimir Putin manteve o poder na Rússia foi reunindo patriotas russos para apoiá-lo nas guerras na Chechênia e na Ucrânia. A guerra — guerra perpétua — é parte integrante do projeto imperial russo, assim como a guerra serviu ao projeto imperial americano no Iraque e no Afeganistão. A guerra é a saúde do estado, como disse Randolph Bourne.

As revoltas, por outro lado, devem ser suprimidas por todos os meios necessários. Se os milhões de pessoas na Russosfera que definham sob uma combinação de cleptocracia e neoliberalismo vissem uma revolta ter sucesso em qualquer um desses países, eles se apressariam em fazer o mesmo. Olhando para as ondas de protesto na Bielorrússia em 2020 e na Rússia há um ano, podemos ver que muitas pessoas estão inclinadas a fazê-lo, mesmo sem esperança de sucesso.

Em democracias capitalistas como os Estados Unidos, onde as eleições podem trocar uma gangue de políticos egoístas por outra, a própria ilusão de escolha serve para distrair as pessoas de agir para trazer mudanças reais. Em regimes autoritários como Rússia, Bielorrússia e Cazaquistão, não existe tal ilusão; a ordem dominante é imposta apenas pelo desespero e pela força bruta. Nessas condições, qualquer pessoa pode ver que uma revolução como o único caminho a seguir. Na verdade, os governantes dos três países devem seu poder à onda de revoluções que ocorreram a partir de 1989, ocasionando a queda do Bloco de Leste. Não podemos culpar seus personagens por enxergar que somente uma revolução poderia trazer uma mudança em suas circunstâncias.

Revolução — mas com que propósito? Não podemos compartilhar o otimismo dos liberais que imaginam que a mudança social no Cazaquistão será tão simples quanto expulsar os autocratas e realizar eleições. Sem mudanças econômicas e sociais profundas, qualquer mudança meramente política deixaria a maioria das pessoas à mercê do mesmo capitalismo neoliberal que as está sofrendo hoje.

E, de qualquer forma, Putin não desistirá tão facilmente. A mudança social real — na Russosfera como no Ocidente — exigirá uma luta prolongada. Derrubar o governo é necessário, mas não suficiente: para se defender das futuras imposições políticas e econômicas, as pessoas comuns terão que desenvolver o poder coletivo em uma base horizontal e descentralizada. Este não é o trabalho de um dia ou ano, mas de uma geração.

O que anarquistas têm a contribuir para esse processo é a proposta de que as mesmas estruturas e práticas que desenvolvemos no curso da luta contra nossos opressores também devem servir para nos ajudar a criar um mundo melhor. Anarquistas já desempenharam um papel importante no levante na Bielorrússia, mostrando o valor das redes horizontais e da ação direta. O sonho do liberalismo, de refazer o mundo inteiro à imagem dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, já se mostrou vazio — os Estados Unidos e a Europa Ocidental estão implicados em muitas das razões pelas quais os esforços para realizar esse sonho falharam no Egito e Sudão e outros lugares. O sonho do anarquismo ainda precisa ser experimentado.

Em resposta aos eventos no Cazaquistão, alguns supostos “anti-imperialistas” estão mais uma vez repetindo o eterno discurso da mídia estatal russa de que toda oposição a qualquer regime aliado da Rússia de Putin só pode ser resultado da intervenção ocidental. Isso é particularmente notório quando as nações na esfera de influência da Rússia abandonaram amplamente qualquer pretensão de socialismo, entregando-se ao tipo de política neoliberal que desencadeou a revolta no Cazaquistão. Em uma economia capitalista globalizada, na qual todos estamos sujeitos ao mesma busca por lucro e precariedade, não devemos deixar que potências mundiais rivais nos joguem uns contra os outros. Devemos ver através de toda a charada. Vamos fazer causa comum entre os continentes, trocando táticas, inspiração e solidariedade para reinventar nossas vidas.

As pessoas comuns no Cazaquistão que se levantaram esta semana mostraram o quão longe podemos ir — e quão mais longe temos que ir juntos.

Forças russas partindo para o Cazaquistão.

O Pano de Fundo da Revolta

No início do dia 6 de janeiro (horário do Cazaquistão oriental), depois que os apagões da internet tornaram impossível completar uma entrevista com participantes do movimento em Almaty, conduzimos a seguinte entrevista com uma advogada anarquista do Cazaquistão que vivia no exterior.

Para contextualizar, quais projetos ou movimentos anarquistas, feministas e ecológicos existiram no Cazaquistão no século 21?

No início, houve oposição ao primeiro presidente ex-comunista, Nursultan Nazarbayev, que acabou liderando o Cazaquistão na era pós-soviética. A partir de meados da década de 1990, ele começou a se tornar mais autoritário, mudando as estruturas de governança para adquirir poderes presidenciais mais fortes. Isso gerou oposição a Nazarbayev dentro da elite política e por todo o espectro político. Surpreendentemente, comunistas, social-democratas, centristas e grupos pró-empresariais colaboraram para exigir uma constituição mais democrática com autoridade presidencial limitada.

Quanto aos movimentos dos de baixo, havia anarquistas, que eram mais um movimento clandestino, e havia um movimento socialista, cujo líder acabou fugindo do Cazaquistão. Havia nacionalistas e islamistas radicais também, mas, novamente, eles não eram tão populares. Eles também eram movimentos clandestinos.

Quanto aos grupos ambientalistas, se eles tiveram alguma atenção pública, foi principalmente de grupos de defesa legal. No Cazaquistão, só uns seis partidos registrados têm permissão para participar das eleições; o resto é proibido. No entanto, existem muitos grupos de defesa de jurídica.

O governo nunca permitiu que qualquer oposição real participasse das eleições desde os anos 2000. Os candidatos tinham faces diferentes, mas os mesmos pensamentos, para fazer com que parecesse um ambiente político “competitivo” no qual um homem forte constantemente ganha o tempo todo — semelhante à situação na Rússia, Bielorrússia e outros países pós-soviéticos ditatoriais.

Existem partidos de oposição no Cazaquistão?

Quanto aos partidos de oposição, basicamente não há nenhum no Cazaquistão. Costumava haver tais partidos nas décadas de 1990 e 2000, mas todos foram fechados ou proibidos pelo governo. Hoje, existem pessoas que afirmam representar a oposição, mas vivem em países como a Ucrânia. Eles não têm nenhuma conexão real com a rua.

Também existe um certo tipo de rivalidade entre eles: já vi todos acusando uns aos outros de colaborar com o governo. Eles tentam atrair os cidadãos insatisfeitos a fazer coisas que não representam realmente qualquer ameaça ao governo, coisas que dão a ilusão de fazer mudanças, como dizer às pessoas para terem um diálogo pacífico com as autoridades locais ou para participarem nas eleições, arruinando propositalmente o voto como forma de “protestar” contra a eleição — qualquer tática que dê a ilusão de lutar contra o governo, quando na realidade é apenas uma perda de tempo.

Nos últimos anos, esse tipo de oposição realmente começou a aparecer dentro do país também; do nada, havia ativistas aleatórios formando movimentos políticos e fazendo piquetes sem experimentar qualquer forma de perseguição, enquanto as pessoas comuns são sempre detidas pela polícia imediatamente, sempre que protestam.

Um grupo de oposição incomum — não posso dizer se é uma oposição controlada — se chama Escolha Democrática do Cazaquistão. É liderado por um empresário que vive na França chamado Mukhtar Ablyazov. Se você pesquisar o nome dele, verá artigos sobre supostos casos de lavagem de dinheiro e ações judiciais. Ele foi um ministro na década de 1990; quando se juntou à oposição da oposição, acabou preso pelo governo do Cazaquistão. Ele foi libertado, mas acabou fugindo do Cazaquistão e vivendo no exílio. Desde então, ele liderou a oposição política com maior apoio nas redes sociais. Quase todas as pessoas associadas a seu movimento foram perseguidas e presas; isso vem acontecendo desde 2017. Todos os protestos que ele organizou do exterior foram reprimidos, com uma presença policial massiva em áreas públicas. Já houve casos em que a internet foi derrubada em todo o país.

De qualquer forma, o que está acontecendo no Cazaquistão agora é completamente inesperado.

Que tensões no Cazaquistão antecederam esses eventos? Quais são as linhas divisórias na sociedade cazaque?

O que realmente levantou a população aconteceu na cidade de Zhanaozen. Esta cidade produz riquezas com o petróleo, mas as pessoas que lá vivem estão entre as mais pobres do país. A cidade é conhecida pelos sangrentos acontecimentos de 2011, quando houve uma greve trabalhista e o governo ordenou que a polícia atirasse nas pessoas. Essa tragédia permaneceu na mente das pessoas, especialmente entre os residentes da cidade e, desde então, outras pequenas greves ocorreram nas indústrias de petróleo — embora tenham sido pacíficas e não tenham levado a derramamento de sangue. Desde 2019, greves e protestos se tornaram mais comuns por lá. Ao mesmo tempo, devido a fatores econômicos, as pessoas se tornaram mais ativas na política em todo o país, à medida que os preços do petróleo despencavam em todo o mundo, impactando economicamente o Cazaquistão. À medida que a moeda do Cazaquistão, Tenge, enfraquecia, as pessoas podiam pagar cada vez menos.

Também existem problemas sérios no Cazaquistão: falta de água potável nas vilas, questões ambientais, pessoas que vivem com dívidas, corrupção e nepotismo em um sistema no qual qualquer objeção pode ser facilmente suprimida. A maioria das pessoas continuou vivendo nessas condições, enquanto a economia serviu a empresários bilionários do Cazaquistão que têm ligações com funcionários do governo e outras pessoas importantes. No início dos anos 2000, as pessoas no Cazaquistão tiveram um respiro de esperança enquanto a economia crescia graças às reservas de gás natural; como consequência, o padrão de vida de muitas pessoas aumentou. Mas tudo mudou em 2014, quando os preços do petróleo caíram em todo o mundo e a guerra na Ucrânia levou a sanções contra a Rússia — o que afetou o Cazaquistão, uma vez que é dependente da Rússia.

Houve alguns pequenos protestos de 2014 a 2016, mas foram facilmente reprimidos. De 2018 a 2019, eles cresceram mais, em parte graças ao referido empresário da oposição, Mukhtar Ablyazov, que usou as mídias sociais para ganhar força. Protestos políticos e ativismo foram organizados sob a bandeira do partido Escolha Democrática do Cazaquistão.

A situação piorou depois de 2020, quando a pandemia de COVID-19 aconteceu. Pessoas perderam seus empregos; algumas ficaram sem como pagar por mercadorias, recebendo muito pouco apoio do governo, enquanto as restrições de saúde tornaram as pessoas mais frustradas e desconfiadas do governo. E então o preço dos produtos aumentou especificamente para alimentos — isso aconteceu em todo o mundo, mas para o Cazaquistão, teve um impacto considerável.

Voltando à cidade de Zhanaozen, que tem uma história de derramamento de sangue, o preço do gás liquefeito disparou — no mesmo lugar onde o combustível é realmente produzido. Esse custo tem crescido constantemente nos últimos dez anos, mas finalmente aumentou ainda mais quando o governo parou de subsidiá-lo, deixando que o mercado decidisse.

Já houve pequenos protestos sobre o assunto naquela cidade — mas em 1º de janeiro de 2022, o preço do gás liquefeito que é usado para mover veículos dobrou inesperadamente. Isso deixou o povo enfurecido. Eles protestaram na praça em grande número. As autoridades pareciam receosas de dispersar o protesto. Outras aldeias da província se levantaram e começaram a bloquear estradas em protesto. Então, em poucos dias, os protestos se espalharam por todo o país.

O que começou com um protesto contra o aumento do preço do gás cresceu em grande parte por causa dos outros problemas que mencionei anteriormente. Isso motivou as pessoas a entrarem em greve e ir mais para as ruas.

Descreva as diferentes agendas dos diferentes grupos em ambos os lados desta luta. Existem facções ou correntes identificáveis nas manifestações?

No início, o governo ignorou os problemas do preço do gás tentando fazer as pessoas se acostumarem, chegando a culpar os consumidores pela alta demanda. Eventualmente, eles baixaram o preço, mas isso não parou os protestos. Então, o Estado basicamente negou seu envolvimento em permitir que os preços do gás inflassem — mas, à medida que os protestos se intensificaram, o governo começou a conceder mais para tentar acalmar as pessoas. Por exemplo, eles se comprometeram a introduzir algumas políticas para oferecer assistência econômica às pessoas, depois de ignorá-las por anos.

Mas os protestos ainda não pararam. Poucas pessoas confiam ou apoiam o governo. As pessoas que se manifestam querem simplesmente uma vida melhor, como imaginam que as pessoas tenham nos países europeus desenvolvidos. Claro, existem diferentes demandas de pessoas diferentes — algumas buscam a renúncia de todo o governo, enquanto outras querem uma nova forma de governo democrático, especificamente uma forma parlamentar sem um presidente executivo, e ainda outras querem mais empregos e indústria e melhores condições social.

Alguns dos confrontos e saques mais violentos estão ocorrendo na antiga capital soviética de Almaty, que é a metrópole financeira do Cazaquistão. As pessoas estão saqueando lojas e incendiando coisas. Elas tomaram o prédio do governo local e o incendiaram.

O governo tem contribuído para essa situação, porque não cumpriu as demandas por renúncia e formação de um novo sistema político democrático. O atual presidente do Cazaquistão, que é um aliado próximo do primeiro presidente, Nazarbayev, está colocando lenha na fogueira ao se recusar a transferir seu poder. Quanto mais tempo ele mantiver sua posição, mais violência haverá, uma vez que nem o governo nem os manifestantes podem se fazer acordos. Enquanto isso continuar, as pessoas que estão cometendo atos violentos poderão continuar a se safar. Há ilegalidade em Almaty; parece que ninguém sabe ao certo quem está no comando agora, já que o gabinete do prefeito foi incendiado e ele desapareceu das vistas do público. A cidade inteira está cercada por manifestantes armados circulando.

A cidade está sob toque de recolher, em teoria, mas na prática, as autoridades se foram ou juntaram-se aos protestos — então a cidade é como uma comuna [isto é, como a Comuna de Paris] pelo que ouvi. Neste ponto, considerando como os eventos estão se desdobrando, eu não chamaria as pessoas de manifestantes, mas sim de revolucionárias — especialmente vendo civis armados lá.

Apresente uma cronologia dos eventos da semana passada.

O protesto começou na cidade produtora de petróleo de Zhanaozen em 2 de janeiro. Na manhã seguinte, outras cidades e vilas no oeste do Cazaquistão começaram a protestar em solidariedade.

Os protestos mais massivos ocorreram à noite, enquanto a agitação se espalhava para outras cidades, incluindo Almaty. Tarde da noite em 4 de janeiro, as pessoas em Almaty marcharam para a praça principal em frente à prefeitura. Imensas tropas policiais foram posicionadas lá. Os confrontos estouraram, mas os manifestantes levaram a melhor.

Eles foram dispersos na madrugada de 5 de janeiro, mas se reagruparam por volta das 9h de uma manhã de nevoeiro. Alguns policiais até mudaram de lado e se juntaram ao protesto. Eventualmente, os manifestantes marcharam para a praça novamente por volta das 10 horas e conseguiram invadir a prefeitura, colocando o prédio em chamas. Oficiais de segurança do governo fugiram de Almaty, deixando a cidade sob o controle dos manifestantes.

Desde então, parece que o presidente mandou algumas tropas para lá novamente na tentativa de assumir o controle. Não sei como está se desenrolando, mas ouvi dizer que durante a noite de 5 de janeiro ou no início da manhã de 6 de janeiro, pessoas começaram a saquear e roubar armas e há relatos de tiroteios.

Em outras cidades, é mais tranquilo, com protestos massivos nas praças. Acho que os manifestantes ocuparam os prédios do governo local em algumas outras cidades, mas, pelo que sei, esses são menos caóticos em comparação com Almaty.

Na capital, Nursultan, está mais tranquilo, mas as pessoas viram um grande número de policiais de choque em torno do palácio presidencial. Basicamente, todo o palácio presidencial está trancado.

Em suma, todo o Cazaquistão é agora como um Jogos Vorazes. Se você já viu a trilogia Jogos Vorazes ou se conhece um resumo básico do enredo, sabe do que estou falando. As pessoas estão assumindo o controle de várias cidades, uma por uma. Novamente, o presidente não quer sair e deixar a oposição reformar o sistema. Então, se isso não acontecer, creio que haverá mais caos até que o governo seja derrubado ou o protesto seja brutalmente suprimido.

Você acha que os participantes desses protestos toma algum ponto de referência dos movimentos de protesto que eclodiram na França, no Equador e em outros lugares do mundo em resposta ao aumento dos preços dos combustíveis? O que informa as táticas que estão usando?

Acho que muitos deles são influenciados pelos protestos que ocorreram em outros países pós-soviéticos, como Bielorrússia e Quirguistão. Parece que em Almaty, os residentes seguiram o exemplo do vizinho Quirguistão, onde as pessoas também invadiram o governo e incendiaram prédios — mas, em comparação com o Quirguistão, o governo foi derrubado mais rapidamente. O Quirguistão passou por três revoluções até agora; considerando sua proximidade e laços culturais com o Cazaquistão, uma vez que ambos os países falam línguas turcas, acho que seu exemplo desempenhou um papel significativo no Cazaquistão.

Quais são as possibilidades para o futuro?

Do meu ponto de vista, posso imaginar alguns cenários. Ou o governo renuncia — ou é derrubado — e o Cazaquistão começa a trilhar o caminho da democratização, ou o governo suprime o levante com um tremendo uso da força, inclusive envolvendo outros países.

O presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, está pedindo ao CSTO [Organização do Tratado de Segurança Coletiva, uma aliança militar formada pela Rússia, Armênia, Bielorússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão] que envie soldados “mantenedores da paz”. Em suma, o presidente está convidando tropas estrangeiras ao Cazaquistão para reprimir os protestos. Ou os manifestantes armados de alguma forma repelem essas forças e o governo cai, ou os revolucionários desistem e são esmagados.

O Cazaquistão enfrenta um futuro sombrio. É uma guerra pela liberdade ou derrota, e a derrota significaria uma perda potencial de mais liberdades e possivelmente de soberania.

O que as pessoas de fora do Cazaquistão podem fazer para apoiar os participantes da luta?

A única maneira realista de as pessoas de fora do Cazaquistão apoiarem é chamar mais atenção para os eventos e talvez organizar algum tipo de ajuda.

Conclusão: uma visão da Rússia

No texto a seguir, um anarquista russo reflete sobre as implicações do levante no Cazaquistão para a região. Você pode ler uma perspectiva dos anarquistas bielorrussos aqui.

Após décadas de repressão, fracassos e derrotas, por que a esperança está crescendo continuamente, como vemos na Bielorússia, Rússia, Quirguistão e agora no Cazaquistão? Por que, depois que nossos parentes, amigos e vizinhos caem, mortos a tiros pela polícia ou pelo exército, as pessoas ainda lutam? Como é que ainda temos essas chances de experimentar o vento da mudança e da emoção, que nos dá um gostinho de tudo o que nossas vidas poderiam ser?

Podemos sentir algumas respostas nas falas do músico cazaque Ermen Anti de uma banda chamada Adaptation:

“Não importa o quanto eles atirem, as balas não serão suficientes.
Não importa o quanto eles esmaguem, mesmo assim
As mudas da raiva justa estão germinando
filhos de Prometeu, levando fogo para as pessoas de um frio congelante.”

Quando olhamos para os eventos das últimas décadas no Cazaquistão, Bielorrússia, Rússia e Quirguistão, precisamos nos perguntar o que a cooperação entre iniciativas e movimentos de luta pela libertação poderia alcançar em nível internacional. Essas conexões podem nos permitir trocar experiências políticas e culturais, para fortalecer a causa comum que os povos desses países devem compartilhar. Ainda assim, em contraste com o quanto as economias e realidades políticas desses países estão interconectadas e interdependentes, os movimentos anarquistas estão desconectados.

O Cazaquistão pode ser um exemplo do que pode acontecer amanhã na Rússia, Bielorrússia e outros países nesta parte do mundo. Hoje, as pessoas na Rússia temem por suas vidas quando pensam em expressar qualquer forma de dissidência. Mas amanhã, podemos ver Zhanaozen e Almaty nas cidades da Rússia, Bielorrússia (de novo!) E outros países. Podemos esquecer as garantias de que “Isso não pode acontecer aqui” — o que pode e não pode acontecer depende, antes de mais nada, do que podemos imaginar e desejar.

Quando as situações se desenrolam como o que vemos hoje no Cazaquistão, podemos ver como é importante estar conectada com outras pessoas em nossa sociedade. Hoje, estamos surpresos — muitas vezes podemos nem estar entre as pessoas nas ruas, lutando e defendendo umas às outras ombro a ombro, ou fazendo outro trabalho importante para apoiar o levante. Para estarmos prontos e conectados, precisamos ser capazes de enfrentar as contradições dentro de nossas comunidades e dentro de nossa sociedade como um todo. Precisamos ser capazes de comunicar nossas ideias e trazer propostas para as pessoas ao nosso redor em situações como essas. Conflitos, desentendimentos e isolamento são camaradas sufocantes que, de outra forma, poderiam dedicar suas vidas à luta. Quando me pergunto o que é necessário para que nos possamos ver nas ruas e nas casas das pessoas, caminhando juntas, cuidando umas das outras e lutando juntos, imagino que nos aproximamos umas das outras de maneiras diferentes — tornando possível que lutemos, nos desenvolvamos, sobrevivamos.

Podemos nos perguntar: o que precisamos mudar na forma como nos aproximamos entre nós e de outras pessoas, como abordamos a luta e nossos movimentos, a fim de torná-los uma fonte de vida e inspiração que possa oferecer às pessoas formas de pensar, lutar e viver?

Por exemplo, nos lembramos do movimento feminista no Cazaquistão, que foi o centro da atenção e do discurso público por alguns anos na década de 2010, que publicou uma revista feminista e trouxe à tona esse tópico no Cazaquistão de uma forma que ninguém havia feito antes, conectando um muitos grupos e comunidades ao longo da linha de fratura de violência doméstica e patriarcado. Este é um exemplo de como podemos nos posicionar para abordar questões que nos conectarão a uma ampla gama de outras pessoas em nossa sociedade.

Nós, nas ex-repúblicas soviéticas, temos uma herança impressionante de resistência e levantes à qual recorrer. Precisamos nos conectar uns aos outros para que possamos acessar essa herança.

Solidariedade e força a todos os que lutam no Cazaquistão e em todos os países pós-soviéticos. Como se costuma dizer, os cães podem latir, mas a caravana deve continuar. Hoje, eles podem pisar em nosso pescoço, mas a luta não para e aqueles que caíram nas ruas de Almaty não serão esquecidos.

Revolução Colorida ou revolta proletária? Uma entrevista com Aynur Kurmanov sobre os protestos no Cazaquistão

Fonte em russo: https://zanovo.media/kategorii/habeas-corpus-2-2/massovye-vystupleniya-v-kazakhstane-tsvetnaya-revolyutsiya-ili-vosstanie-rabochego-klassa/

Fonte em inglês: https://lefteast.org/a-color-revolution-or-a-working-class-uprising-an-interview-with-aynur-kurmanov-on-the-protests-in-kazakhstan/

Tradução em português: https://lavrapalavra.com/2022/01/08/revolucao-colorida-ou-revolta-proletaria-uma-entrevista-com-aynur-kurmanov-sobre-os-protestos-no-cazaquistao/

Por Aynur Kurmanov, via Leafteast.org, traduzido por Lígia Orlandin

Hoje, todos os meios de comunicação de massa e canais de TV pós-soviéticos estão presos aos protestos que repentinamente engoliram o Cazaquistão. Para alguns, eles despertam esperança, para outros – horror e rejeição. Existem contradições e diferentes interpretações do que está acontecendo: protestos de pessoas justas, disputas de clãs, conspiração de forças pró-ocidentais e pró-turcas ou até mesmo “reação islâmica”. Mas o que realmente está acontecendo? Um correspondente da Zanovo-Media entrevistou Aynur Kurmanov – um dos líderes do Movimento Socialista do Cazaquistão.

Uma república modelo

O Cazaquistão é um dos maiores países pós-soviéticos, perdendo apenas para a Federação Russa nesse sistema de relações políticas e econômicas, construído após o colapso soviético. E não apenas porque Nursultan Nazarbayev foi um dos arquitetos da CEI (Comunidade dos Estados Independentes). O modelo cazaque de transformação suave do antigo partido e da nomenclatura soviética em uma oligarquia capitalista com “uma face asiática” foi visto por muitos como um modelo. Na verdade, tal modelo tinha características superficialmente atraentes não apenas para as elites dominantes em outras repúblicas, mas também para o cidadão médio: um alto nível econômico, a presença de atributos formais de democracia e poucas restrições à cultura ocidental. Grandes reservas de recursos naturais, incluindo petróleo, e o potencial industrial herdado do período socialista foram uma boa plataforma de lançamento para o jovem estado. Ao mesmo tempo, a propaganda oficial da Federação Russa, e dos canais da CEI, gostava de dar ao Cazaquistão um exemplo de preservação das “tradições de união”, homenageando a memória da Grande Guerra Patriótica, a ausência de nacionalismo e assim por diante.

Os protestos em massa estouraram imediatamente após o feriado de Ano Novo, em 2 de janeiro. O motivo dos protestos foi o aumento do preço do gás liquefeito para carros, de 60 tenge para 120 tenge por litro. As primeiras manifestações começaram no oeste do Cazaquistão, na região de Mangystau, o coração de grandes empresas produtoras de petróleo. É aqui que se encontra a notória Zhanaozen1, onde há dez anos uma greve de trabalhadores foi brutalmente reprimida: 15 grevistas foram mortos e centenas feridos.

No dia seguinte – 3 de janeiro – os manifestantes da província de Mangystau acrescentaram novos pontos sociais e políticos às suas demandas iniciais: redução dos preços dos alimentos, medidas contra o desemprego, solução para o déficit de água potável, renúncia do governo e autoridades locais. Neste dia, os manifestantes também começaram a se reunir nas praças e ruas de Almaty, a capital Nursultan e outras cidades. Em vários lugares, as estradas foram bloqueadas e os manifestantes não se dispersaram nem mesmo à noite.

Na terça-feira, 4 de janeiro, os manifestantes entraram em confronto com a polícia. Em Alma-Ata, as forças de segurança usaram granadas de atordoamento para dispersar os manifestantes. Por sua vez, os manifestantes derrubaram carros da polícia. Na noite do mesmo dia, internet móvel, mensageiros e redes sociais pararam de funcionar.

As autoridades do Cazaquistão tentaram explicar o aumento do preço do gás pelo fato de seu preço agora ser determinado por pregão eletrônico. Como se costuma dizer, “o mercado decidiu”. A administração da Região do Mangystau afirmou com firmeza que tudo estava conforme os moldes da moderna economia de mercado e que, portanto, o preço anterior não retornaria.

Mas no dia 4 de janeiro, sob pressão dos manifestantes, o governo foi forçado a baixar o preço do gás na região de Mangystau para 50 tenge por litro. O presidente do Cazaquistão, Kassym-Jomart Tokayev, disse que as demais demandas da população seriam consideradas separadamente. Então, em 5 de janeiro, o atual gabinete de ministros foi demitido e o diretor da usina de processamento de gás em Zhanaozen foi detido.

Região de pobreza total

O co-presidente do Movimento Socialista do Cazaquistão, Aynur Kurmanov, descreveu a situação nos seguintes termos:

Os trabalhadores de Zhanaozen foram os primeiros a se levantar. O aumento do preço do gás serviu apenas para desencadear os protestos populares. Afinal, a montanha de problemas sociais vem se acumulando há anos. No outono passado, o Cazaquistão foi atingido por uma onda de inflação. Deve-se considerar que os produtos são importados para a região de Mangystau, e sempre foram 2 a 3 vezes mais caros por lá. Mas em uma onda de alta de preços no final de 2021, o custo dos alimentos aumentou ainda mais e substancialmente. Devemos também ter em conta que o Oeste do país é uma região de forte desemprego. No decorrer das reformas neoliberais e da privatização, a maioria das empresas foi fechada. O único setor que ainda funciona aqui são os produtores de petróleo. Mas, em sua maioria, são propriedade de capital estrangeiro. Até 70 por cento do petróleo do Cazaquistão é exportado para os mercados ocidentais, a maioria dos lucros também vai para proprietários estrangeiros.

Praticamente não há investimento no desenvolvimento da região: é uma área de total pobreza e miséria. No ano passado essas empresas começaram a passar por uma otimização em grande escala. Os empregos foram cortados, os trabalhadores começaram a perder seus salários e bônus, muitas empresas foram transformadas em apenas empresas de serviços. Quando a empresa Tengiz Oil despediu 40 mil trabalhadores de uma vez na região de Atyrau foi um verdadeiro choque para todo o Oeste do Cazaquistão. O estado nada fez para evitar essas demissões em massa. É necessário compreender que um trabalhador do petróleo alimenta de 5 a 10 membros da família. A demissão de um trabalhador condena automaticamente toda a família à fome. Não há empregos aqui, exceto para o setor de petróleo e setores que atendem às suas necessidades.

O Cazaquistão realmente construiu um modelo de capitalismo de matéria-prima. A população acumula muitos problemas sociais, existe uma estratificação social enorme. A “classe média” está arruinada, o setor imobiliário está destruído. A distribuição desigual do produto nacional tem um considerável componente de corrupção. As reformas neoliberais praticamente eliminaram a rede de segurança social. Muito provavelmente, os proprietários de corporações transnacionais calcularam “5 milhões de pessoas são necessárias para fazer a manutenção do ‘tubo’; toda a população do Cazaquistão com mais de 18 milhões de habitantes é demais”. É por isso que essa revolta é anticolonial em muitos aspectos, as causas dos protestos atuais estão enraizadas no funcionamento do capitalismo: o preço do gás liquefeito realmente subiu nas negociações eletrônicas. Houve uma conspiração de monopolistas que se beneficiaram com a exportação de gás para o exterior, gerando escassez e aumento do preço do gás no mercado interno. Então, eles próprios provocaram as revoltas. No entanto, deve-se notar que a explosão social atual se dirige contra toda a política de reformas capitalistas que vem sendo efetuada nos últimos 30 anos e seus resultados destrutivos.

Tradições de luta dos trabalhadores: greve espontânea

A forma de protesto inicialmente foi uma clássica “greve proletária”. Na noite de 3 para 4 de janeiro, uma greve feroz começou nas empresas Tengiz Oil. Logo a greve se espalhou para as regiões vizinhas. Hoje, o movimento de greve tem dois pontos principais de foco – Zhanaozen e Aktau.

Na escrita dos teóricos da conspiração hoje, a agitação no Cazaquistão foi cuidadosamente preparada no Ocidente, como evidenciado pela cuidadosa organização e coordenação dos manifestantes. Nas palavras de Kurmanov:

Este não é um Maidan, embora muitos analistas políticos estejam tentando apresentá-lo desta forma. De onde veio essa incrível auto-organização? Essa é a experiência e tradição dos trabalhadores. Greves abalam a região de Mangystau desde 2008, e o movimento grevista começou na década de 2000. Mesmo sem qualquer contribuição do Partido Comunista ou de outros grupos de esquerda, havia demandas constantes para nacionalizar as empresas de petróleo. Os trabalhadores simplesmente viram com seus próprios olhos aonde a privatização e o controle do capitalismo estrangeiro estavam levando. No decorrer dessas manifestações anteriores, eles ganharam uma enorme experiência de luta e solidariedade. A própria vida no deserto faz com que as pessoas fiquem unidas. Foi neste contexto que a classe trabalhadora e o resto da população se uniram. Os protestos dos trabalhadores em Zhanoazen e Aktau deram o tom para outras regiões do país. Os yurts e as tendas que os manifestantes começaram a armar nas principais praças das cidades não foram retirados da experiência “Euromaidan”: eles estiveram na região de Mangastau durante as greves locais no ano passado. A própria população trouxe água e comida para os manifestantes.

Hoje, no Cazaquistão, não há oposição legal, todo o campo político foi limpo. O Partido Comunista do Cazaquistão foi o último a ser liquidado em 2015. Restaram apenas 7 partidos pró-governamentais. Mas há muitas ONGs trabalhando no país, que cooperam ativamente com as autoridades na promoção de uma agenda pró-Ocidente. Seus temas favoritos: a fome dos anos 1930, a reabilitação de participantes do movimento Basmachi e colaboradores da Segunda Guerra Mundial, e assim por diante. As ONGs também trabalham no desenvolvimento do movimento nacionalista, que no Cazaquistão é totalmente pró-governo. Nacionalistas organizam manifestações contra a China e a Rússia, aprovadas pelas autoridades.

Segundo nosso interlocutor, os sinistros islâmicos que supostamente estão por trás dos recentes acontecimentos também são extremamente fracos e mal organizados no Cazaquistão. Como ele nos garantiu, de fato, o Cazaquistão moderno está comprometido com a construção de um estado monoétnico, e o nacionalismo é sua ideologia oficial. Todos os relatos do Cazaquistão “pró-soviético” por meio do canal de TV Mir são um mito:

Em 2017, um monumento foi erguido em Kyzyl-Orda para Mustafa Chokai, o inspirador da legião da Wehrmacht do Turquestão. Hoje, o estado está revisando radicalmente a história. O processo se intensificou especialmente após a visita de Nursultan Nazarbayev aos EUA alguns anos atrás. O movimento pan-turco também está se tornando cada vez mais ativo. Mais recentemente, por iniciativa de Nursultan Nazarbayev, o Conselho o Turco foi estabelecido em Istambul em 12 de novembro de 2021. A elite do Cazaquistão mantém seus principais ativos no Ocidente. É por isso que os estados imperialistas não estão absolutamente interessados na queda do atual regime; já está completamente do lado deles.

Mas talvez nem tudo seja tão inequívoco com relação às prioridades geopolíticas do Cazaquistão? Parece que mesmo assim sua liderança tende a conduzir uma notória política multivetorial, manobrando entre a Rússia, o Ocidente, a China e a Turquia. Porém, uma condição se aplica a todos os parceiros estrangeiros aqui — a legislação local “leal” permite que empresas estrangeiras realizem os lucros fora do país. No entanto, se possível, nenhum dos atores globais deixará de tentar em transformar o governo em um ainda mais obediente e, é claro, a oposição liberal tentará estabelecer e já está estabelecendo seu controle sobre o movimento de protesto de massa.

A renúncia de Nazarbayev como presidente para chefiar o Conselho de Segurança foi motivada pelo desejo de criar a aparência de democracia, inclusive para o Ocidente. Na realidade, ele mantém o controle total sobre todos os ramos do poder e apenas aumenta seu poder, ao mesmo tempo que evita completamente a responsabilidade. O presidente Tokayev é uma figura decorativa, um peão da família governante. Sem dúvida, os protestos atuais podem levar algumas facções a tentar um golpe no palácio ou ações semelhantes. Você não pode reduzir tudo à teoria da conspiração. Você também não deve idealizar o movimento de protesto atual. Sim, é um movimento social de base, com um papel pioneiro para os trabalhadores, apoiado pelos desempregados e outros grupos sociais. Mas há forças muito diferentes trabalhando nisso, especialmente porque os trabalhadores não têm seu próprio partido, sindicatos de classe, um programa claro que atenda plenamente aos seus interesses. Os grupos de esquerda existentes no Cazaquistão são mais como círculos e não podem influenciar seriamente o curso dos eventos. Forças oligárquicas e externas tentarão se apropriar e/ou pelo menos usar este movimento para seus próprios fins. Se vencer, começará a redistribuição da propriedade e o confronto aberto entre vários grupos da burguesia, uma “guerra de todos contra todos”. De qualquer forma, os trabalhadores poderão conquistar certas liberdades e obter novas oportunidades, incluindo a criação de seus próprios partidos e sindicatos independentes, o que facilitará sua luta por seus direitos no futuro.

Protestos no Cazaquistão: 5 pontos-chave para entender o que está acontecendo

Fonte em espanhol: https://es.communia.blog/protestas-en-kazajistan/

Tradução em português: https://amanajeanarquista.blogspot.com/2022/01/protestos-no-cazaquistao-5-pontos-chave.html

A repressão dos protestos no Cazaquistão internacionalizou-se: paraquedistas russos e tropas armênias, quirguizes e tajiques sob mandato da OTSC [Organização do Tratado de Segurança Coletiva] estão adentrando o país para enfrentar os manifestantes. As agências russas falam de uma ação conjunta para enfrentar “terroristas” e “bandidos”, as norte-americanas falam de uma tentativa de Putin para “expandir sua influência”. Ambas escondem a realidade: do domingo passado até hoje, o Estado cazaque colapsou diante do início de uma greve de massas que se estendeu por todo o país, porém ela está longe do nível de auto-organização dos trabalhadores que temos visto no Irã.

O que aconteceu?

Nem tentativa frustrada de golpe de Estado, nem invasão russa: repressão de uma greve de massas

A cronologia dos protestos no Cazaquistão fala por si mesma. No último domingo, 2 de janeiro, eclodiram protestos massivos em Zhanaozen depois que o governo dobrou os preços do gás. Depois das primeiras tentativas de repressão, os trabalhadores levantaram barricadas em toda a cidade.

Na noite de 3 e 4 de janeiro, começou uma greve selvagem nas empresas petrolíferas de Tengiz. Prontamente, a greve se estendeu às regiões vizinhas. Na verdade, o movimento grevista tem dois focos principais: Zhanaozen e Aktau, dois dos principais centros das indústrias extrativas.

Em 4 de janeiro, chegaram caminhões com trabalhadores petrolíferos em Almati e milhares somaram-se ao protesto ocupando o centro da cidade e protestando em frente a prefeitura.

O presidente Tokayev anunciou o estado de emergência nas regiões. Na manhã de 5 de janeiro, ele aceitou a renúncia do governo e propôs substituir o aumento de preços de 100% por outro de 50%. À tarde, ele anunciou que havia substituído seu mentor, o ex-ditador Nazarbayev, como chefe do Conselho de Segurança do país. Depois de reconhecer que os protestos haviam se estendido a mais da metade do país, anunciou que dezenas de “encrenqueiros” haviam sido “liquidados” e estavam sendo identificadas suas identidades.

Apesar da repressão, os manifestantes seguiram protestando na frente da prefeitura de Almati, superando as forças policiais (ver vídeo). O edifício acabou em chamas e as concentrações centraram-se no Ministério Público e na residência oficial do Presidente.

Também em Aktobe, outro grande foco insurrecional, o edifício de governo local foi atacado, sem êxito, pelos trabalhadores. Os protestos no Cazaquistão estavam longe de esgotarem-se.

A repressão continuou assassinando e prendendo em massa durante toda a noite. Em Almati, os manifestantes levantaram barricadas, e gravaram vídeos de vários casos de desarme das forças de segurança. Ante a resistência, em muitas cidades do país a polícia se dissolveu ou se uniu aos protestos.

Para fazer frente ao colapso ao qual havia sido levado o Estado pelos protestos no Cazaquistão, Tokayev lançou os paraquedistas contra os manifestantes e solicitou aos chefes dos Estados da OTSC que enviassem tropas para superar a “ameaça terrorista”, qualificando os manifestantes que havia tentando acalmar pouco antes como “bandos de terroristas internacionais”.

Quem são os manifestantes?

Nem terroristas internacionais, nem cidadãos indignados: trabalhadores em luta

Os protestos no Cazaquistão acontecem em um contexto mais amplo do que o apresentado pela imprensa. Como destacamos em nosso resumo anual de lutas, um dos avanços mais importantes de 2021 foi que desde o Cazaquistão até Donbass, passando pela Geórgia, os trabalhadores ensaiaram formas de afirmação como classe.

Não é casualidade que agora um dos epicentros dos protestos no Cazaquistão seja Zhanaozen. A onda de greves em Zhanaozen em julho foi uma referência em toda Ásia Central. O movimento que, como então destacamos, tendia a converter-se em greve de massas apesar dos obstáculos sindicais, não deixou desde então de agregar setores e conectar equipes, mantendo uma tensão constante que impossibilitou até agora uma repressão brutal aberta.

Porém, sua influência foi muito além do local. No Cazaquistão houve mais greves na primeira metade de 2021 que nos três anos anteriores juntos, todas centradas em Mangystau e Zhanaozen.

Quando um acidente nas minas de Karaganda em Novembro pressionou o ânimo dos mineiros para uma nova grande greve como a de 2017, os sindicatos apressaram-se a abafar qualquer tentativa de resposta. E praticamente ao mesmo tempo eclodiu a greve nas instalações de gás da Mangystaumunaigaz na região de Zhanaozen. A referência de Zhanaozen converteu a frustração dos mineiros em fermento de uma greve selvagem (= por cima dos sindicatos) que agora estourou.

É essa acumulação e confluência de lutas que vão acontecendo uma a uma – ainda que não todas – por cima dos sindicatos, que explica a rápida mobilização a partir do primeiro dia, quando o governo põe em marcha o aumento do preço do gás para o consumo doméstico e de transporte.

Por exemplo, desde o dia 2 os mineiros de Dzhezkazgan, em Karaganda, verdadeiro epicentro das greves selvagens, manifestam-se diante do edifício do governo por uma baixa na idade de aposentadoria, contra a inflação e pela liberdade de manifestação. Até o dia 5, em pleno colapso do Estado, os representantes políticos locais nem sequer se dignaram a receber as petições dos trabalhadores.

“Para se aquecerem, os manifestantes acenderam uma fogueira e os moradores locais lhes levaram comida e chá. Os mineiros dizem à RFE/RL que a manifestação é pacífica. A polícia vigia a situação, porém não detém ninguém. A partir das 15 horas de 6 de janeiro, umas 300 pessoas encontram-se próximas do edifício do akimat. Segundo um dos participantes da ação, no período da noite havia muito mais manifestantes, e hoje estão somando-se novos participantes.

Na região de Karaganda, como em outras regiões, não funciona internet, há problemas com a comunicação de celular. A maioria das operadoras informam que somente é possível realizar chamadas de emergência.”

Por que lutam os trabalhadores?

Nem “Euromaidan” anti-russo, nem “luta contra a corrupção”: as necessidades básicas dos trabalhadores são o motor dos protestos no Cazaquistão

O detonador que acabou de acionar as greves e manifestações no Cazaquistão, fazendo-as confluir, foi o aumento do preço do gás.

As explorações extrativas estão no meio do deserto e todos os bens são importados. O aumento do gás para o transporte significa aumento geral dos preços e perda de um poder de compra que já estava no limite pelos baixos salários.

“Os preços do gás, que também produzimos, decolaram. Tudo depende do gás. Se o gás encarece, tudo encarece.

As pessoas comuns já dispõem de pouca renda, e a situação piorará. Que reduzam o preço do gás para 50-60 tenges. Ou que aumentem nossos salários para 200 mil tenges. Do contrário, não sobreviveremos quando tudo encarecer.

As autoridades dizem que não há gás suficiente, que a planta construída há 50 anos está desgastada, antiquada. E o que fizeram durante 30 anos?” – Um trabalhador, recolhido por RLT

Os diretores das plantas, sindicalistas e o presidente local tentaram “explicar” aos trabalhadores porque “precisavam” aumentar os preços (ver vídeo). O argumento de sempre: a empresa, caso contrário, entraria em perdas e perder-se iam os empregos, que era necessário aguentar e esperar um futuro melhor. Os trabalhadores responderam que contar “contos de fadas” não era uma solução para os problemas e políticos, sindicalistas e diretores saíram sem convencer ninguém. Os trabalhadores aprenderam a lição.

“O ano passado essas empresas começaram a ser otimizadas em grande escala. Cortaram-se postos de trabalho, os trabalhadores começaram a perder seus pagamentos, os bônus, muitas empresas converteram-se em simples empresas de serviços.

Quando na região de Atirau a empresa Tengiz Oil despediu 40 mil trabalhadores de uma vez, foi um verdadeiro choque para todo o oeste do Cazaquistão. O Estado não fez nada para evitar essas demissões massivas. E é necessário entender que um trabalhador petrolífero alimenta de 5 a 10 membros de sua família. A demissão de um trabalhador condena automaticamente toda a família à fome.

Aqui não existem postos de trabalho, exceto no setor petrolífero e nos setores que atendem suas necessidades.” – Ainor Kurmanov

As manifestações no Cazaquistão são na verdade uma revolução?

Os protestos no Cazaquistão não chegaram a uma revolução, é uma greve de massas que não ainda não está auto-organizada

O que estamos vendo não é uma revolução, mas uma greve de massas que não para de se estender e que, contudo, bastou para colapsar o aparato repressivo do Estado cazaque.

Salvo em algumas empresas de Zhanaozen, as lutas confluíram, porém não as assembleias e os comitês elegidos por essas. Em seu conjunto, a luta está ainda longe do nível de auto-organização dos trabalhadores que temos visto no Irã.

O resultado é que os trabalhadores descobriram sua própria força e apareceram como sujeito político determinante a nível nacional… porém, não têm capacidade de organizar o poder que ficou vago.

Essa debilidade organizativa das manifestações no Cazaquistão não pode deixar de se converter em uma fraqueza programática. Vimos isso em Aktau, ontem à noite. Os dirigentes sindicais assumiram a liderança dos protestos com o consentimento das forças repressivas e do governo regional, reafirmaram as reivindicações básicas às quais se opunham até recentemente, e reivindicaram a manutenção da ordem. Muito simbolicamente, estenderam uma bandeira nacional – símbolo do interesse que enfrentam os trabalhadores – o mais rápido possível.

Os sindicatos semeiam o caminho para a derrota, como em todos os lados, porém ao final desta há algo pior que um novo corte nas necessidades básicas. Reforçado pelos paraquedistas russos e animado ante a perspectiva de contar com 2.500 soldados quirguizes e tajiques que a OTSC lhe prometeu imediatamente, o presidente Tokayev ordenou ao exército a “disparar para matar” contra os “20.000 bandidos” que continuam a protestar em Almati.

Então, por que os países da área de influência russa mandam tropas?

As classes dirigentes reconhecem e se unem diante de seu inimigo, sem deixar de proteger-se ante o que poderia fazer seu competidor frente a um vazio de poder

As classes dirigentes regionais entenderam claramente desde o primeiro momento o que havia por debaixo das manifestações no Cazaquistão. Sabem reconhecer o inimigo de classe quando o veem em movimento. Há dez anos não lhes tremeu o pulso na hora de reprimir a sangue e fogo em Zhanaozen.

Tampouco têm dúvidas as agências e os governos europeus e anglo-saxões. Desta vez não existem apoios e mensagens como na Rússia, Bielorrússia, Ucrânia, Geórgia… ou cada vez que uma facção burguesa faz algo que possa incomodar o imperialismo russo.

A “união sagrada” entre as facções da burguesia produz-se automaticamente cada vez que o proletariado entra em cena. Inclusive entre rivais imperialistas. Basta recordar Berlim em 1953, ou Budapeste em 1956. Nesse caso, quando a Chevron é uma das empresas petrolíferas diretamente afetadas pelas greves em Tengiz, não podia se esperar outra coisa.

Porém, tampouco deixam de competir entre si, nem deixam de tentar tirar vantagem, ainda que somente seja simbólica ou propagandista do que em realidade é um revés para todas elas. É expressivo como a imprensa anglo e seus ecos em outros idiomas, apesar de não colocarem o tema nas primeiras páginas, tentaram puxar a sardinha pro seu lado apresentando as manifestações no Cazaquistão como uma revolta “contra a corrupção e a desigualdade”, o que poderia ter réplicas também na própria Rússia.

Putin sabe de sobra que não deve temer uma intervenção de seus rivais imperialistas, nem sequer sofrerá novas represálias econômicas por lançar suas tropas de elite contra os protestos no Cazaquistão. Porém teme, com razão e como os demais governos da região, os custos econômicos e os riscos políticos de um vazio de poder.

Seu objetivo primário é cortar pela raiz qualquer possível evolução revolucionária das manifestações no Cazaquistão. Porém, há mais. Frente a seus rivais imperialistas quer mostrar a capacidade da Rússia para “manter a ordem” em sua esfera direta de influência. E frente aos governos aliados na Ásia Central e no Cáucaso, mandar o sinal de que é capaz de lhes manter no poder em caso de enfrentarem uma mobilização de classe como a que impulsiona os protestos no Cazaquistão…

… o que é certo, mas somente em partes, porque o fundamental não depende dele, senão do desenvolvimento da auto-organização dos trabalhadores. Um passinho a mais de onde os trabalhadores chegaram até agora e as seguranças da classe dirigente se dissipariam.

Cazaquistão Depois do Levante
Relatos de Testemunhas Oculares de Almaty e Análise de Anarquistas da Rússia

Fonte: https://pt.crimethinc.com/2022/01/16/cazaquistao-depois-do-levante-relatos-de-testemunhas-oculares-de-almaty-e-analise-de-anarquistas-da-russia

ǀ Deutsch ǀ English ǀ Español ǀ Français ǀ Русский ǀ

Continuando nossa cobertura da revolta da semana passada no Cazaquistão, traduzimos uma série de perspectivas sobre a situação de várias fontes anarquistas russas e entrevistamos duas anarquistas de Almaty, a maior cidade do Cazaquistão e o lugar onde os combates se tornaram mais intensos.

Este texto também inclui fotografias inéditas tiradas por nossos contatos em Almaty.

As seguintes fontes devem servir para desmascarar quaisquer deturpações fáceis da revolta das autoridades no Cazaquistão, Rússia ou Estados Unidos – ou seus apoiadores equivocados.

Para aqueles que espalham teorias da conspiração sobre os Estados Unidos tentarem encenar uma “revolução colorida” no Cazaquistão, devemos salientar que os protestos começaram em resposta ao cancelamento do governo de seu subsídio ao gás, que é produzido sob um lucrativo monopólio estatal no Cazaquistão. Aqueles que defendem os governos do Cazaquistão e da Rússia estão defendendo as forças repressivas que estão impondo medidas de austeridade neoliberal aos trabalhadores explorados em uma economia baseada no extrativismo. A posição respeitável para todas as pessoas que genuinamente se opõem ao capitalismo é ao lado dos trabalhadores comuns e outros rebeldes que enfrentam a classe dominante, não apoiando os governos que afirmam representar os manifestantes enquanto os matam e os aprisionam.

Isso não quer dizer que os confrontos no Cazaquistão representem uma luta anticapitalista unificada, ou mesmo um movimento trabalhista. Os relatos mais confiáveis da composição dos protestos reconhecem que houve uma ampla gama de diferentes participantes utilizando diferentes táticas para perseguir diferentes agendas. É claro que, se simpatizarmos com os trabalhadores e trabalhadoras que protestam contra o aumento do custo de vida, também entendemos por que os desempregados e marginalizados podem se envolver em saques.

Uma crise como a revolta no Cazaquistão expõe todas as falhas dentro de uma sociedade. Todo conflito preexistente é levado a um ponto de ruptura: tensões étnicas e religiosas, rivalidades entre a elite dominante, disputas geopolíticas por influência e poder. Vimos isso em menor grau na França durante o movimento dos Coletes Amarelos e nos Estados Unidos durante a Revolta por George Floyd e suas consequências, embora essas crises não tenham chegado ao levante no Cazaquistão, onde, devido ao poder autoritário inerente à estrutura, qualquer luta é imediatamente uma aposta de tudo ou nada.

Se for verdade, como argumentamos, que manifestantes no Cazaquistão estavam se opondo às mesmas forças que o resto de nós enfrenta em todo o mundo, então a repressão violenta desses protestos pelos soldados dos exércitos de seis nações coloca questões que todos devemos encarar. Parece que essas explosões estão se tornando praticamente inevitáveis à medida que catástrofes econômicas, políticas e ecológicas atingem uma após a outra em todo o mundo. Como nos preparamos com antecedência, para maximizar a probabilidade de que essas rupturas sejam bem-sucedidas, apesar de todas as forças que estão colocadas contra nós? Em momentos de potencial revolucionário, como podemos propor questões transformadoras às demais pessoas que compõem esta sociedade conosco, focando as linhas de conflito ao longo dos eixos mais criadores e libertadores, mesmo quando competimos com uma variedade de facções que visam centralizar suas próprias ideologias e interesses? Como evitamos tanto as teorias da conspiração quanto a manipulação, tanto o derrotismo e quanto a derrota?

No panorama a seguir, composto em colaboração com anarquistas russos, apresentamos a análise do levante no Cazaquistão, país ex-membro da antiga União Soviética, em seguida, compartilhamos uma entrevista que realizamos com anarquistas em Almaty assim que o acesso à internet foi restabelecido após a repressão.

A Prisão das Nações

A partir de 1º de janeiro, o que começou como um único protesto contra o aumento do custo de vida se transformou em uma revolta nacional em grande escala que, por enquanto, foi brutalmente reprimida por uma combinação de força militar doméstica e estrangeira.

A princípio, os manifestantes pediram a renúncia do governo, a redução do preço dos combustíveis e a remoção do ex-presidente Nursultan Nazarbayev, o cardeal cinza do Cazaquistão, do comando do Conselho de Segurança Nacional. O slogan de todo o país para esses dias era “Shal ket!” — “Vovô, vá embora!” À medida que os protestos ganharam força, as pessoas rapidamente chegaram ao ponto de não querer concordar com nada menos do que uma mudança completa no governo, incluindo a deposição do atual presidente Kassym-Jomart Tokayev.

O regime tentou reprimir os protestos. No entanto, os manifestantes conseguiram apreender armas da polícia e revidar, saqueando lojas e incendiando ou ocupando prédios municipais. O presidente Tokaev declarou estado de emergência e enviou militares contra os manifestantes com ordens de atirar abertamente em quem ousasse resistir. Ao mesmo tempo, Tokaev pediu oficialmente à Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO, composta pela Rússia e vários países vizinhos) apoio para recuperar o controle sobre o país.

De acordo com o Ministério do Interior do Cazaquistão, cerca de 8000 pessoas foram presas durante as manifestações e pelo menos 164 pessoas foram mortas; desde então, números muito mais elevados têm circulado. Alguns blogueiros proeminentes e líderes sindicais teriam desaparecido. A internet ficou desligada por dias. Pessoas foram baleadas nas praças e na rua por franco-atiradores e outros soldados.

A repressão militar da revolta, incluindo a intervenção do CSTO, desempenhou um papel fundamental no resultado. Em 10 de janeiro, relatos da mídia e testemunhos de pessoas no Cazaquistão mostram que os combates pararam em Almaty e que as manifestações de massa cessaram em outras cidades.

Aqui está a análise que o Anarchist Fighter, uma plataforma anarquista que acompanha a Rússia, publicou em seu canal Telegram channel:

1) Intervenção do CSTO. Todas as fontes mais ou menos sensatas entre os cazaques percebem isso como uma intervenção e uma tentativa de impor um “Big Brother” em sua soberania. Cada hora da presença dessas forças no país multiplica a aversão e a raiva;

2) O regime autoritário não desapareceu. O presidente Tokayev concentrou mais poder em suas mãos, convidou militares estrangeiros, ordenou que suas tropas “atirem sem avisar”… Mas os cazaques não estão acostumados com a brutalidade do governo. Isso não os detém, e a insatisfação com o governo não vai embora.

3) A crise econômica não cessará sem reformas fundamentais para a justiça social. O uso da força é essencialmente apenas um adiamento dos aumentos de preços. Nenhuma medida para superar a pobreza e reduzir a desigualdade na sociedade é oferecida pelas autoridades. Consequentemente, o descontentamento que eles criaram também não diminuirá.

“Wahhabis, Terroristas, Manifestantes” – Desinformação sobre a Revolta

De acordo com o podcast Trends of order and chaos, da rede avtonom.org,

As autoridades cazaques estão se esforçando muito para salvar as aparências e construir sua versão da realidade. A operação punitiva é chamada de “contra-terrorista”, como se “terrorista” fosse qualquer pessoa que se oponha às autoridades por meios violentos. Os rebeldes, respectivamente, são “militantes e bandidos e devem ser mortos”, e a culpa do levante é supostamente da “mídia livre e figuras estrangeiras”, que é literalmente o que Tokayev disse. Estamos testemunhando o desenvolvimento da propaganda militarizada ao vivo. A mentira de que preto é branco e guerra é paz, é sentimentalismo, e quem não discorda, vai pro paredão. Afinal, ninguém sentirá pena dos “terroristas”, este é um mantra que os ditadores pós-soviéticos aprenderam bem.

Desde o início dos combates, tanto a mídia cazaque quanto a estrangeira fizeram alegações sobre as identidades dos manifestantes. As definições variavam de “manifestantes”, “jovens agressivos” e “saqueadores” até “esquadrões nacionalistas”, “20.000 bandidos atacando Almaty” e “terroristas islâmicos”. É verdade que vários grupos e facções participaram do levante. Mas isso não é um problema em si – uma sociedade inteira foi representada na revolta, com todas as suas diferenças e contradições. É seguro supor que diferentes pessoas participaram de diferentes ações contra o regime, incluindo lutas e saques.

Do Anarchist Fighter:

“O jornalista Maksim Kurnikov disse algumas coisas muito interessantes na transmissão matinal de Ekho Moskvy. Ele observou que o esquema de “pegar armas das lojas de armas e depois atacar as forças de segurança” não é novo no Cazaquistão.

Exatamente a mesma coisa aconteceu na cidade de Aktobe em junho de 2016: várias dezenas de jovens, divididos em grupos, pegaram armas de duas lojas, apreenderam veículos e atacaram uma parte da Guarda Nacional, onde foram derrotados. As autoridades do Cazaquistão estão muito confusas sobre o caso: ainda não está muito claro qual é a base para suas alegações de uma “conexão islâmica”.

Kurnikov também falou de guardas paramilitares em refinarias de petróleo ilegais no oeste do Cazaquistão, formados por aldeões locais, depreciativamente chamados de “mambets” (agricultores coletivos) pelos moradores do Cazaquistão. Esses grupos também se envolveram em confrontos armados com policiais.

O que tudo isso nos diz? É claro que as palavras do presidente Tokayev sobre “grupos terroristas cuidadosamente treinados no exterior” são pura propaganda e provavelmente uma mentira grosseira. Que células armadas capazes de apreender instituições de segurança e arsenais de repente se materializaram de uma multidão heterogênea também parece improvável. Dito isto, não temos evidências de envolvimento islâmico ou nacionalista nos eventos de Almaty. No entanto, como podemos ver, existem, em princípio, grupos organizados capazes de resistência armada ativa na sociedade do Cazaquistão. É provável que as pessoas que se envolveram em confronto direto com as forças de segurança fossem em parte representantes de tais grupos e em parte manifestantes auto-organizados espontâneos. Há uma analogia com o Maidan de 2014 (ou seja, os protestos em Kiev]), onde a defesa foi organizada tanto de forma espontânea pela multidão quanto com a participação de grupos organizados radicais que se juntaram.”

Afirmações sobre fundamentalistas islâmicos participando dos eventos podem ser verdadeiras até certo ponto. Mas também é certo que as autoridades farão uso de qualquer informação sobre eles para desacreditar todos os outros grupos, identidades e participantes envolvidos no levante. O desespero econômico e a perseguição social e política muitas vezes levam as pessoas ao fundamentalismo, bem como a outras formas de radicalismo.

Segundo Anarchist Fighter:

“A questão sobre o real equilíbrio de forças entre os atores não estatais dos eventos ainda é urgente:

O jornalista da oposição Lukpan Akhmedyarov, da estação de rádio Ekho Moskvy, expressou confiança de que o ataque armado às autoridades em Almaty foi obra do povo de Nazarbayev. Os argumentos para essa confiança não são claros.

Vale ressaltar que Akhmedyarov notou em sua terra natal, Uralsk, na praça ao lado dos manifestantes, um grupo de várias dezenas de pessoas organizadas pedindo um ataque ao Akimat. Um pequeno grupo de “instigadores vestidos de forma idêntica” também foi relatado em Kostanai.

O que é isso? Alguma força rebelde organizada sombria, grupos criminosos ou realmente provocadores dos serviços do Estado? Ou talvez uma narrativa “não violenta”, buscando rotular imediatamente os apoiadores da ação direta como tal? Não há respostas.

Uma coisa é clara: dividir os manifestantes em “pacíficos” e “terroristas” é uma distorção da realidade. Mesmo antes dos acontecimentos em Almaty, havia clipes do mesmo Uralsk, onde os manifestantes estavam bravamente libertando os detidos da polícia.

Vamos nos permitir um truísmo: sim, um protesto radical “violento” não garante o sucesso de forma alguma, nem é imune a provocações. Mas um protesto puramente “não violento” em nossa realidade autoritária está simplesmente condenado de antemão. “Vocês foram ouvidos, vamos resolver isso e colocar o mais violento de vocês na cadeia” – essa é sempre a resposta das potências que estão na Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão…

Os vários rumores sobre conflitos internos dentro da estrutura de poder no Cazaquistão e as especulações sobre esquemas geopolíticos em jogo no levante podem ser verdade. Mas elevar esses rumores e especulações à posição central na narrativa sobre o que está acontecendo no Cazaquistão é uma escolha política: é uma decisão de negar a ação das inúmeras pessoas comuns que participaram do levante por suas próprias razões. Como todas as teorias da conspiração, isso pressupõe que as únicas pessoas que têm alguma agência na situação são os obscuros atores do poder global; também serve para distrair as pessoas das coisas óbvias que todos sabem que estão acontecendo, como a elite política do Cazaquistão lucrando com a experiência de todos os outros.

Rumores e especulações servem para influenciar os eventos e as formas como os outros os entendem e se envolvem com eles. Verdade ou não, cada uma dessas intervenções serve para focar a atenção em determinadas figuras, para difundir um certo conjunto de suposições sobre como o mundo funciona. Se essas teorias da conspiração lançarem dúvidas sobre os participantes do levante o suficiente para distrair as pessoas de apoiarem os manifestantes que estão se defendendo contra a exploração econômica e a dominação política, então elas terão sucesso em seu propósito de manter todo mundo em todos os países dependentes das elites políticas.

O próprio Tokayev não hesitou em propor as histórias mais bizarras, alegando que os terroristas internacionais que supostamente lideraram a revolta não podem ser identificados porque seus corpos foram roubados dos necrotérios. De acordo com Anarchist Fighter,

Acontece que os terroristas não podem ser mostrados ao público, mesmo que estejam mortos. Seus camaradas de armas sequestraram os mortos direto dos necrotérios!

E o principal é que as autoridades do Cazaquistão, sem vergonha, afirmam abertamente que os manifestantes radicais estavam vestidos como policiais e soldados (!!!) Agora, qualquer atrocidade dos repressores pode ser atribuída aos próprios revolucionários. Talvez os manifestantes tenham sido baleados por aqueles homens “disfarçados”? E se agora crianças e jornalistas foram baleados por homens de uniforme e distintivos — então você já sabe: é claro que foram os “manifestantes” disfarçados e não os brutais executores das forças especiais de Tokayev.

Além da questão de quem participou do levante, é importante perguntar quem se beneficia com sua repressão. Como disse um comentário,

Putin não é um nacionalista, mas um fiador. Ele garante a segurança da elite pós-soviética e a segurança de sua propriedade. Ele costumava garantir isso apenas na Federação Russa, mas agora parece que ele garante isso também no Cazaquistão. Afinal, há capital russo lá também.

Veja a lista da Forbes do Cazaquistão. Os verdadeiros beneficiários da operação de paz estão listados lá. A lista, aliás, é curiosamente internacional. As duas primeiras linhas são ocupadas pelos cazaques coreanos do de Kim. A primeira é a maior acionista da KAZ Minerals, uma “empresa britânica de cobre”, como descreve a Wikipedia. Em 2021, sua fortuna aumentou em US$ 600 milhões. O segundo Kim, juntamente com Baring Vostok, é dono de um dos principais bancos do Cazaquistão, o Kaspi Bank, que também é negociado em Londres e tem apresentado um crescimento impressionante, apesar da pandemia. Em terceiro lugar, fiquei surpreso ao encontrar um cidadão de Georgia Lomatdze, que também é coproprietário do Kaspi Bank e seu gerente.

Depois vem um certo Bulat Utemuratov, que no governo de Nazarbayev dos anos 90 se especializou em comércio exterior. Ele é dono do ForteBank, cujo lucro líquido para 2020 “atingiu 53,2 bilhões de tenge” (US$ 121 milhões), bem como as principais participações nas principais operadoras de telefonia móvel, 65% da mineradora RG Gold e vários outros ativos, incluindo uma franquia Burger King e “hotéis Ritz-Carlton em Nur-Sultan, Viena e Moscou”…

O quinto e sexto lugares são compartilhados pela filha e genro de Nazarbayev. Seu genro, Timur Kulibayev, possui “o controle acionário da Steppe Capital Pte Ltd de Cingapura”, que possui a “holandesa” KazStroyService Infrastructure BV e a Asset Minerals Holdings (Caspi Neft JSC, 50% da Kazazot JSC).

Dinara Kulibayeva, filha de Nazarbayev, junto com seu marido, é proprietária do Halyk Bank of Kazakhstan – a “capitalização de mercado do banco atingiu £ 3,1 bilhões (US$ 4,3 bilhões)”. Em sétimo lugar está um especulador financeiro russo e fundador da “empresa americana de investimentos” Freedom Holding Corp. Timur Turlov. “De acordo com as demonstrações financeiras da empresa, seus ativos triplicaram em 2020 para US$ 1,47 bilhão (US$ 453,5 milhões em 2019), o patrimônio quase dobrou para US$ 225,5 milhões (US$ 131,3 milhões, respectivamente), o lucro líquido saltou 10 vezes para US$ 42,3 milhões (US$ 4 milhões, respectivamente).”

E assim por diante.

E do outro lado das barricadas estão todos aqueles que trabalham para toda esta alta sociedade por 300 dólares por mês (é aproximadamente assim que o salário médio no Cazaquistão é estimado), extraindo minerais para corporações “britânicas” e “cingapurianas” ou atender os concidadãos no setor de serviços, que também pertence a todos os mesmos da lista; ou aqueles que não encontraram trabalho em empresas de grande e médio porte, cujos ganhos só podiam ser adivinhados (acredita-se que seja ainda menor). Os trabalhadores, concentrados em torno das empresas, exigem garantias sociais (preços de serviços públicos mais baixos, assistência médica gratuita, salários mais altos etc.). Aqueles que nem são trabalhadores estão simplesmente tentando obter o seu próprio dinheiro de lojas e bancos através de vitrines quebradas e lojas saqueadas.

Considerando que os trabalhadores certamente serão demitidos assim que o calor diminuir, as ações destes não podem ser chamadas de irracionais ou injustas.

Uma Primavera Adiada por Trinta Anos

Novamente, de acordo com o podcast avtonom.org, “Trends of order and chaos,”

“As autoridades cazaques e o presidente Tokayev não confiavam em suas próprias estruturas policiais e governamentais. A polícia e o exército já haviam começado a se mover para o lado dos rebeldes, e era óbvio que qualquer um dos vários resultados era possível. Nessas circunstâncias, Tokayev decidiu pelo último extremo – chamar as forças repressivas dos países vizinhos. Isso foi suicídio político: na verdade, ele admitiu que estava em guerra com seu próprio povo e até com seu próprio aparato estatal”.

A situação no Cazaquistão escalou muito rapidamente – não apenas os protestos, mas também a brutalidade com que foram reprimidos. A luta nas ruas é uma consequência das maneiras como a paciência das pessoas no Cazaquistão vem sendo testada há décadas. A sociedade cazaque já viu brigas e tiroteios nas ruas antes – em 1986, quando o governo de Mikhail Gorbachev reprimiu uma revolta em Almaty, realizando um massacre,1 e em 2011, quando a polícia atirou em trabalhadores em greve em Zhanaozen, matando dezenas.

Quando surgiram as primeiras notícias de intervenção militar doméstica, isso não pareceu causar um grande revés para o levante. A luta não cessou então — pelo contrário, intensificou-se. Vimos vídeos de soldados desarmados no meio da multidão, acolhidos por mudar de lado.

Então a internet foi derrubada. O motivo oficial do apagão da internet foi “impedir que terroristas de vários países que estão lutando em Almaty se coordenassem com seus quartéis-generais”. Isso causou uma crucial falta de informação dos lugares onde a revolta estava ocorrendo, tornando mais fácil apresentar – ou deturpar – os eventos. Em uma época em que tudo é filmado, fotografado, carregado e compartilhado, cortar uma revolta social dos meios de comunicação serve para apagá-la da realidade, abrindo um espaço no qual as falsidades podem prosperar.

No entanto, um dos eventos mais importantes ocorreu à vista de todos: a intervenção do CSTO. Isso levantou muitas contradições ao mesmo tempo. Formalmente designado como “assistência de manutenção da paz da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO)”, inclui um contingente de até 200 soldados da Armênia e do Tadjiquistão, 500 da Bielorrússia do ditador Lukashenko (que recentemente reprimiu um levante do seu próprio povo), um contingente não especificado número de soldados quirguizes e 3.000 soldados da Rússia. É significativo que os pára-quedistas russos que foram transferidos para o Cazaquistão sejam comandados por Anatoliy Serdyukov, que tem experiência nas guerras da Chechênia, na anexação da Crimeia e na guerra na Síria. Podemos ver as atividades imperiais da Rússia em plena exibição aqui.

No Cazaquistão, o regime está se esforçando para permanecer no poder por todos os meios necessários, recorrendo ao convite às ditaduras vizinhas para invadir. Para as pessoas no Cazaquistão, isso deve significar a perda final de qualquer legitimidade que Tokayev possa ter tido aos seus olhos. Todos na região podem ver que a CSTO representa a unidade de seus governos contra seus povos.

De acordo com avtonom.org:

Um presidente que chama o povo de seu próprio país de “gangues terroristas” representa um ponto baixo mesmo para os padrões das “repúblicas” autoritárias pós-soviéticas.

Na verdade, trata-se de uma invasão de outro país à força por parte das autoridades que perderam a confiança do povo. Significaria a reprodução infindável do cenário “A Rússia é uma prisão de nações” e estaria no mesmo patamar que a repressão das revoluções húngaras em 1848 e 1956, com tanques nas ruas de Praga em 1968, e com a invasão de Afeganistão em 1979.

De Zhanaozen a Almaty: lembrando os mortos

De Anarchist Fighter:

“A atual revolta no Cazaquistão começou com os protestos em Zhanaozen. A mesma cidade onde, em dezembro de 2011, as autoridades atiraram em trabalhadores do petróleo em greve. A tragédia em Zhanaozen deixou uma marca na cultura de protesto no Cazaquistão. As pessoas têm conservado a memória dos mortos. O dever dos vivos era continuar o trabalho dos caídos.

E em janeiro de 2022, Zhanaozen se levantou novamente. A primeira cidade do país, um exemplo para todas as outras. O motivo formal dos protestos foi o aumento dos preços do combustível e dos alimentos. Mas, como observou Mikhail Bakunin, a mera insatisfação com a situação material não é suficiente para a revolução, é necessária uma ideia mobilizadora. No Cazaquistão, uma dessas ideias foi a lealdade aos combatentes que morreram em 2011. Os trabalhadores que morreram então sob as balas nunca verão o mundo com que sonharam, mas a morte por causa de um sonho tornou-se um testamento para que os vivos continuem sua causa. E assim para os rebeldes do Cazaquistão não há como voltar agora.

A cultura rebelde do Cazaquistão tem muito a aprender. Nós também devemos guardar a memória dos mártires do movimento de libertação na Rússia e na Bielorrússia. Sobre Michael Zhlobitsky, Andrey Zeltzer, Roman Bondarenko e outros heróis. Eles morreram para nos tornar mais corajosos e mais fortes, e somos gratos a eles. Devemos contar como eles viveram e por que eles deram suas vidas. Como os eventos no Cazaquistão mostram, mártires caídos são capazes de levar as pessoas à revolta.”

Entrevista: Testemunho ocular de anarquistas em Almaty

Para obter mais perspectiva sobre os eventos no Cazaquistão, contatamos duas anarcofeministas que testemunharam algumas das cenas da revolta em primeira mão. Elas não estavam na linha de frente dos confrontos, mas são conhecidas ativistas que participam de organizações feministas na cidade há anos, [2] então elas têm a coisa mais próxima de um ponto de vista “neutro” sobre os eventos que poderíamos encontrar.

Apresentem-se e diga qual a situação da qual você está falando.

Somos duas anarquistas do Cazaquistão, ambas ela/dela. Participamos de muitas atividades anarco-feministas e ecológicas de esquerda, libertação animal e veganas em Almaty nos últimos onze anos, mas não estamos tão ativas no momento.

Não posso indicar nenhum movimento anarquista no Cazaquistão no século 21. Houve algumas atividades clandestinas na década de 1990, mas, no momento, nada disso existe. Eu participava de um grupo marxista de esquerda: reuniões, grupo de leitura, algumas palestras públicas. Não sei o que os ex-membros que ficaram aqui estão fazendo agora. Não ouço nada sobre nenhum grupo de “esquerda” aqui.

Fui uma das organizadoras de um dos primeiros movimentos feministas aqui – Kazfem. Organizamos muitas atividades públicas e performances, publicamos uma revista feminista chamada Yudol’ e organizamos manifestações para o dia 8 de março [Dia] Internacional da Mulher].

Há um movimento liberal da juventude aqui chamado Oyan Kazakhstan (“Acorde, Cazaquistão”) que está ativo agora. Eles organizam reuniões públicas, apresentações, marchas e muitas vezes são perseguidos pela polícia. Tudo começou após a ação com faixas que Beibarys Tolymbekov e Asya Tulesova realizaram na maratona da cidade em 2019. [3] Eles foram presos por 15 dias e chamou muita atenção, especialmente nas mídias sociais, o que não havia acontecido antes. Existe uma teoria da conspiração de que todos esses ativistas são pró-governo, porque ninguém está preso agora, mas não acho que seja verdade. Conheço muitos deles pessoalmente. Eles também apoiam atividades feministas e LGBTQ. Do lado oposto – principalmente haters na internet e em alguns meios de comunicação do governo – as pessoas afirmam que tudo isso é obra do “Ocidente” (Europa e Estados Unidos).

O Cazaquistão é um país autoritário. Tivemos o mesmo presidente [Nursultan Nazarbayev] por 28 anos, e o novo [Kassym-Jomart Tokayev] é apenas um fantoche. Mas quando o primeiro presidente se demitiu, as pessoas começaram a pensar em mudança. O culto à personalidade em torno de Nursultan Nazarbayev não desapareceu depois que ele se demitiu. A capital, Astana, foi renomeada “Nursultan”, o que causou muitos protestos. Nos últimos anos, a situação econômica vem piorando, principalmente após a pandemia, inflação muito alta, corrupção, etc. Além disso, tem havido muita venda e aluguel de nossas terras para a China e outros países.

A situação sempre foi assim – mas há dez anos, ou mesmo cinco anos, mais pessoas eram leais ao presidente e temiam a “desestabilização”. Naquela época, havia uma esperança de que nós [Cazaquistão] estivéssemos nos “desenvolvendo”, que as coisas melhorariam em breve.

Mesmo na época dos eventos em Zhanaozen em 2011, quando os trabalhadores que protestavam foram baleados, havia muito pouco apoio de Almaty. Muitas pessoas pensaram que o que aconteceu lá era correto.

Antes, se havia algum protesto, era organizado e apoiado pela geração mais velha, por trabalhadores e pessoas das regiões, os auls (aldeias), geralmente liderados pelo obscuro líder oposto Mukhtar Oblyazov. Mas nos últimos três anos, os jovens da classe média urbana tornaram-se ativistas políticos. Eram principalmente pessoas de Almaty, mas também houve apoio em outras cidades.

A propósito, acho que os problemas ecológicos em Almaty – onde temos níveis extremamente altos de poluição e piora a cada ano – são o grande motivo do protesto dos jovens aqui. Junto com o desenvolvimento das mídias sociais, é claro.

Conte-nos o que você experimentou em Almaty na semana passada.

Logo após o Ano Novo, começaram a chegar notícias sobre uma revolta dos trabalhadores em Zhanaozen. O protesto foi pacífico, mas as demandas foram bastante radicais – desde preços mais baixos da gasolina até a renúncia do governo. Os protestos também começaram em outras cidades. Soube-se que haveria ações de solidariedade em Almaty no dia 4 de janeiro, mas não tive informações precisas.

No caminho para casa naquele dia, soube de protestos em diferentes partes da cidade e das prisões de ativistas do [movimento liberal juvenil mencionado acima] Oyan Kazakhstan. Moro um pouco fora da cidade, nas montanhas e, já em casa, ficou claro que algo sério estava acontecendo. À noite, todas as conexões de internet ficaram offline. Eu não sabia para onde ir e se eu poderia voltar.

Sobre o que aconteceu na cidade durante esse tempo, meu camarada Daniyar Moldabekov, jornalista político, escreveu:

Quando os manifestantes se aproximaram da praça, a polícia começou a lançar bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo. Eu e milhares de outros sufocamos, nossos olhos e rostos ardiam, nos sentíamos mal, tossíamos sem parar. É um milagre que eu não desmaiei. Eles devem ter disparado mais de uma centena de granadas de efeito moral entre 23h e 4h, que foi quando meus colegas tiveram que me levar para casa. Eu ainda podia ouvir o barulho do meu apartamento.

Cerca de uma hora depois que a multidão chegou à Praça da República, eles desceram para a Rua Abai. Lá eles enfrentaram um veículo blindado que vinha em sua direção. Um caminhão passou transportando cidadãos acenando com bandeiras do Cazaquistão. Alguns deles seguravam escudos que pareciam ter roubado da tropa de choque.

As pessoas ouviram explosões a noite toda. Eu me recusei a acreditar. Pela manhã, a notícia foi dada por telefone. Liguei para todo mundo o dia todo, ouvi falar das vítimas, os ativistas foram soltos. Só foi possível ficar online na casa de alguns amigos. O prédio Akimat (a prefeitura) estava sendo ocupado. Todo mundo estava tentando nos convencer a ficar em casa. Especulando que os protestos poderiam ter um caráter nacionalista, algumas pessoas começaram a ter medo (sou etnicamente russa no Cazaquistão).

Não havia informações disponíveis sobre quem estava na praça ou na cidade naquele momento. Minha amiga e eu decidimos ir ver por nós mesmas.

A cidade estava meio vazia. Carros com bandeiras do Cazaquistão circulavam pelas ruas, gritando algo alegre. Tudo estava fechado. Nas portas, havia placas que diziam “estamos com o povo”. Um clima de emoção. À medida que nos aproximávamos da praça, havia mais grupos de rapazes. Eu vi uma fita de ombro (que indica patente) da polícia caída na estrada. Havia pessoas com paus se encontrando. Tornou-se um pouco assustador, mas ninguém era agressivo. No monumento aos acontecimentos de 1986 (a revolta contra o regime soviético), encontramos manifestantes com escudos policiais. Não havia um único policial ou soldado à vista.

Então vimos o Akimat [prefeitura] queimando. Não podíamos acreditar em nossos olhos. As pessoas estavam cuidando de fogueiras. Todo mundo estava calmo. Eles quebraram as portas do prédio em frente ao Akimat. Havia canais de TV e outros serviços governamentais. Homens vieram até nós novamente: “Por que você veio?” (Eles queriam dizer — por que você veio, já que você é etnicamente russa?).

“Essa cidade e esse país são tão meus quanto de vcês.”, respondi. Eles nos cumprimentaram alegremente. Não sentimos nenhuma agressão deles.

Oferecemos chá quente aos manifestantes. O homem nos disse que estava nos protestos desde o início – que tudo começou pacificamente, até que as autoridades começaram a detonar bombas e usar violência.

“Agora”, disse ele, “eles estão atirando em combatentes”. Os guardas permaneceram apenas perto do próprio edifício Akimat.

Ele e outros homens lá viram pessoas baleadas na cabeça. Eles chamaram táxis e colocaram os feridos nos carros para levá-los ao hospital. Ele nos disse que planejavam ocupar o aeroporto, para que os militares russos não pudessem desembarcar lá.

Muitos dos altos escalões burgueses do governo e empresários já haviam deixado o país em voos privados. Havia rumores de que N. Nazarbaev também havia deixado o país.

Nenhuma das pessoas que vimos na praça parecia “saqueadores” [sic].

Eles queriam que o governo renunciasse. Eles não estavam cumprindo ordens; ninguém estava controlando eles. Esta foi uma revolta trabalhista nacional. Ninguém estava com medo de morrer, mas não vimos nenhuma raiva. Eles nos mostraram ferimentos de balas de borracha e nos avisaram que em breve haveria tiroteio grave, que seria melhor irmos embora.

O som de explosões e tiros tornou-se mais próximo e mais frequente. Nós saímos. Um homem nos deu uma carona em seu carro. Todos esses dias, as pessoas mostraram solidariedade umas às outras.

Meus amigos e eu decidimos ficar juntos na minha casa. Estávamos animados. Isso foi antes que surgissem notícias sobre destruição, saques e morte de civis. À meia-noite, entre 5 e 6 de janeiro, todas as conexões de internet foram encerradas. Durante quatro dias, ficamos isolados; só podíamos fazer e receber chamadas e elas não funcionavam bem.

Naquela noite, toda a cidade ficou sem todos os serviços, incluindo o corpo de bombeiros e os serviços médicos. Os incêndios foram apagados por voluntários. Além disso, alguns manifestantes e voluntários tentaram parar os “ladrões”. [4]

Em 7 de janeiro, algumas lojas e caixas eletrônicos distantes do centro da cidade ainda estavam funcionando. Naquela parte da cidade, quase tudo estava vazio, exceto os prédios governamentais queimados ao redor da praça. Alguns serviços estavam funcionando lá. No dia anterior, fora possível entrar nos prédios; ninguém vigiava. Desta vez, tiramos algumas fotos e então houve um tiro próximo e saímos do local.

Na noite de 9 de janeiro, tornou-se possível obter uma conexão à Internet com serviços de proxy. Uma conexão móvel ainda não estava disponível. Na manhã de 10 de janeiro, a conexão funcionou em todos os lugares, mas apenas até as 13h e depois das 17h30 às 19h30.

Tem havido muita conversa de fora do Cazaquistão sobre quem está “por trás” dos protestos. Essas acusações têm alguma credibilidade? Também vimos algumas reportagens afirmando que os confrontos entre facções rivais dentro da estrutura de poder também estão contribuindo para a situação. Quanto você acha que o fundamentalismo islâmico está envolvido nesses eventos?

O presidente Tokaev ainda governa, apesar dos rumores sobre sua aposentadoria. Agora, os canais de TV e a mídia do governo estão espalhando tanta desinformação e propaganda. É muito cedo para tirar conclusões, mas algumas coisas são claras.

Tudo começou como uma revolta popular. Sim, eles queimaram Akimat, mas ninguém os liderou. Eles só queriam que o antigo regime acabasse. Eles não eram “criminosos” [sic].

Depois que começou, algumas outras forças apareceram. Não sabemos quem eram. Mas é verdade que eles foram organizados. Mas por quem? Agora há muitos rumores. Alguns meios de comunicação oficiais dizem que eles são do [vizinho] Quirguistão, onde houve várias revoluções desde a independência [como o Cazaquistão, o Quirguistão se tornou independente quando a União Soviética se separou em 1991]. Esses meios de comunicação também estão divulgando relatos sobre o Talibã ou jihadistas. Pessoas que conheço pessoalmente disseram que viram pessoas nas ruas que “se pareciam com eles” [sic].

Aqui no Cazaquistão, não vi nenhuma conversa sobre a CIA [a Agência Central de Inteligência do governo dos Estados Unidos]. Acho que é propaganda russa.

O ex-assessor do presidente vem fazendo denúncias sobre uma conspiração dentro das estruturas governamentais, alegando que há vários anos havia “campos de treinamento” nas montanhas e o Comitê de Segurança Nacional estava escondendo essa informação. Ele e afirmou: “Tenho informações exclusivas de que, por exemplo, 40 minutos antes do ataque ao aeroporto, foi dada uma ordem para remover completamente o cordão e os guardas”.

O que você pode dizer sobre a dinâmica interna da revolta?

Todo mundo fora do Cazaquistão está tentando analisar o que está acontecendo e é muito difícil fazer isso sem contexto, e quem está dentro do país não pode fazer isso por falta de informações completas. Acho que nem nós, os moradores deste país, ainda não vamos entender o que aconteceu. Além do fato de que não há conexão estável com a internet agora, e que antes não havia sequer uma conexão de telefone celular, todos os canais de notícias são severamente censurados e isso só vai piorar.

Não vou descrever as teorias que estão circulando agora, mas todas elas dizem respeito a diferentes lutas de poder entre o clã Nazarbayev e outros que buscam o poder — por exemplo, há uma teoria de que Tokayev, com a ajuda dos militares russos, está garantindo sua posição no poder.

O assustador de tudo isso é que dezenas de milhares de pessoas estavam envolvidas no jogo e suas tentativas bem-intencionadas de mudar as condições sociais e políticas deste país para melhor, para o bem de todos, agora estão sendo usadas por algumas pessoas dividir os recursos deste país entre si de uma nova maneira. Sim, tudo começou com as demandas econômicas dos trabalhadores no oeste do Cazaquistão, que protestavam contra o forte aumento dos preços do combustível. Então as demandas se tornaram políticas: a renúncia do governo e do presidente, a eleição de akims (prefeitos) e uma república parlamentar. Algumas das demandas foram atendidas, mas não de uma só vez, e quando foram ignoradas, uma onda de protesto e solidariedade se espalhou por todas as cidades do Cazaquistão, de modo que de fora parecia uma grande explosão revolucionária, que em nosso país não ocorreu ao longo de trinta anos de regime autoritário.

Não podemos dizer nada com certeza agora, exceto uma coisa – esse protesto não teve um líder público, e os distúrbios de rua e as ocupações de prédios administrativos não tiveram demandas expressas. Mas houve assassinatos e um grande número de vítimas entre a população, que sofreu primeiro em batalhas com a polícia, depois uns com os outros nas ruas, de onde a polícia fugiu, e depois os civis fuzilados nas ruas pelas forças armadas do Cazaquistão e do CSTO (embora nos seja dito que eles apenas protegem as instalações estatais agora).

Os meios de comunicação de massa que foram autorizados a continuar funcionando começaram a nos falar sobre radicais e islâmicos, usando a imagem do inimigo de fora. Antes disso, nos primeiros dias dos protestos, houve um discurso pedindo “diálogo pacífico com os manifestantes” – e um dia depois já havia ordem de atirar para matar (no discurso do presidente Tokayev). Após a entrada das tropas do CSTO e dois dias de tiroteios constantes nas ruas, Tokayev equiparou manifestantes a terroristas, bem como ativistas e defensores dos direitos humanos, e a mídia independente em suas palavras tornou-se uma ameaça à estabilidade. O discurso do Estado está em constante mudança no processo dessa busca por um inimigo: ontem esse inimigo era supostos desempregados subornados do Quirguistão, hoje já são radicais do Afeganistão. Todos nós esperamos que amanhã não sejam os ativistas que defenderam as reformas políticas no Cazaquistão nos últimos três anos e saíram aos comícios.

O que você pode nos dizer sobre a repressão?

O músico quirguiz Vicram Ruzakhunov foi preso e torturado pelas autoridades cazaques como “terrorista” e obrigado a gravar um vídeo e “confessar”. Agora ele está livre.

O jornalista independente local Lukpan Akhmediyarov foi preso. Outro jornalista independente, Makhambet Abjan, enviou uma mensagem dizendo que em 5 de janeiro a polícia foi ao seu apartamento; agora ele está desaparecido. Meus amigos e muitas outras pessoas nas redes sociais relatam que seus parentes e amigos também estão desaparecidos.

As autoridades já confirmaram a morte de centenas de vítimas, incluindo duas crianças. Ativistas sindicalistas estão desaparecidos – incluindo Kuspan Kosshigulov, Takhir Erdanov e Amin Eleusinov e seus parentes.

Em Almaty, jornalistas do Canal Dozhd’ (Телеканал Дождь), que tentaram filmar no necrotério municipal, foram alvejados (não foram feridos).

No dia 6 de janeiro, voluntários vieram à praça. Alguns ativistas exibiram uma faixa que dizia “Não somos terroristas”. A polícia atirou contra eles, matando pelo menos um.

Como você acha que as tropas russas entrando no Cazaquistão mudarão a situação a longo prazo?

A entrada de tropas russas é muito preocupante. Na situação de uma guerra com a Ucrânia, poderíamos imaginar todos os piores cenários. Todos que conheço concordam que isso é inadequado e que podemos chamar isso de ocupação.

Pessoalmente, temo que as tropas russas que entram neste país consolidem politicamente a já forte influência da Rússia no Cazaquistão, e o país se torne como a Rússia que conhecemos agora, com ativistas torturados e casos forjados. Nossa oposição política já está completamente silenciada e a população do país completamente intimidada. Considerando que este é o segundo tiroteio durante os protestos (2011 e 2022), e na história do Cazaquistão também houve uma repressão brutal de uma revolta sob a URSS em 1986, e as informações sobre o número de pessoas mortas naquela época ainda são classificadas… então não há esperança de que em um futuro próximo saberemos o que realmente aconteceu e quantas pessoas foram mortas e feridas. A contagem provavelmente vai para milhares de pessoas.

O que você acha que vai acontecer depois?

Agora é muito cedo para imaginar o resultado, em uma situação de guerra de informação, propaganda e isolamento. Não sou especialista em política.

Com certeza, a repressão vai se intensificar agora. A internet e todos os meios de comunicação serão censurados. Agora o governo tenta fazer uma “boa cara”, como se fossem os salvadores que nos salvaram dos terroristas. Eu não tenho certeza que isso vai funcionar. Mas, por enquanto, acho que vai ser tranquilo. As pessoas estão muito assustadas e chocadas.

Existe alguma coisa que as pessoas fora do Cazaquistão possam fazer para apoiar você ou outras pessoas lá?

Espalhar informações, é claro. Talvez em breve haja mais repressão e alguns ativistas precisarão de ajuda para deixar o país.

O suporte mais importante é o informativo. Em 2019, após a eleição presidencial, fomos todos presos nos comícios e os únicos que escreveram sobre isso foram a mídia estrangeira e a mídia independente do Cazaquistão (que são muito poucas e os sites são frequentemente bloqueados). Agora é muito importante que o sangrento janeiro no Cazaquistão não tenha sido apenas um belo quadro revolucionário como escrevem muitas publicações de esquerda, mas também que não seja lembrado como um ato terrorista organizado de fora, como dizem todas as fontes oficiais de diferentes países.

  1. De 17 a 19 de dezembro de 1986, houve protestos em Almaty em resposta a Mikhail Gorbachev, então secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, demitindo o antigo primeiro secretário do Partido Comunista do Cazaquistão e substituindo-o com um funcionário da Rússia. (Gorbachev mais tarde afirmou que estava tentando impedir que Nursultan Nazarbayev concentrasse muito poder em suas mãos; Nazarbayev passou a governar o Cazaquistão por 28 anos.) Em 1986, como em 2022, os protestos terminaram em um massacre nas mãos das forças estatais. Em 1986, como em 2022, espalharam-se rumores de que os manifestantes foram subornados com vodka ou desviados por meio de panfletos.
  2. Kazfem, sem dúvida o primeiro movimento feminista no Cazaquistão desde o colapso da União Soviética, publica a revista feminista Yudol’ e organiza manifestações para 8 de março, Dia Internacional da Mulher.
  3. Em 21 de abril, Asya Tulesova e Beibarys Tolymbekov foram presas por 15 dias, acusados de violar a lei do Cazaquistão sobre a assembleia pública depois de pendurar uma faixa ao longo da rota da maratona em Almaty, onde se lia “Você não pode fugir da verdade” – um comentário sobre o eleições presidenciais.
  4. Essa reportagem explora esta questão, embora a partir de uma posição partidária.

Comments are closed.