[Brasil] Bolsonaro vs. Lula

Contra a armadilha da democracia: eleições no brasil

Fonte em espanhol: https://www.editorialande.com/post/contra-la-trampa-de-la-democracia-elecciones-en-brasil/

Protestos da classe trabalhadora em todo o mundo, uma guerra inter-imperialista em curso que ameaça se tornar uma guerra nuclear, preços exorbitantes em cada canto do planeta, a esquerda do capital novamente revalidando o eleitoralismo e a velha história da crise capitalista que promete ser mais encarniçada. É nesse cenário contraditório que mais uma vez se desenvolvem as cinzentas armadilhas eleitorais da democracia burguesa. O cenário atual é o Brasil.

O resultado das próximas campanhas eleitorais no Brasil estará no centro da opinião pública internacional nos próximos dias. Não é para menos, trata-se da principal economia regional em termos de produção e da décima terceira em nível mundial. Uma formação econômico-social que, mesmo sendo periférica, tem uma considerável capacidade de exportação de capitais, mantendo relações assimétricas ou sub-imperialistas com vizinhos da região como Paraguai ou Bolívia, e que historicamente se implicou de forma ativa em missões de contra-insurgência promovidas pelo imperialismo norte-americano e as burguesias latino-americanas. Atualmente mantém relações econômicas fluidas com o imperialismo chinês, colaborando com a sua expansão na América Latina.

Como é evidente, o curso dos acontecimentos políticos neste país não pode ser menosprezado por ninguém. Mas sua avaliação, ainda mais se pretende ser feita a partir de uma perspectiva proletária, deve ser feita considerando as contradições essenciais, e não o mero imediatismo que apenas fica no aparente.

Apesar de nos fatos o Partido dos Trabalhadores (PT) ter demonstrado ser um reformista que não realizou mudanças estruturais, grande parte da esquerda e do chamado “progressismo” continuam sustentando a existência de uma diferença essencial entre esse partido e a extrema direita representada por Jair Bolsonaro. A postura impulsionada por esses setores ingênuos afirma que a permanência de Bolsonaro no governo equivaleria a uma vitória fascista sobre a democracia liberal como Mussolini marchando sobre Roma. Por consequência, a tarefa imediata seria a luta contra o bolsonarismo em defesa das liberdades democráticas e do Estado de Direito. Em outras palavras, esses grandes “defensores da liberdade” são na realidade militantes do capital e de suas expressões democrático-burguesas. Não importa que Lula tenha sido muito claro com sua postura pró-capitalista. Por exemplo, já em 2002 ele disse o seguinte em entrevista publicada na Revista IstoÉ: “O capitalismo brasileiro hoje está inoperante. O atual governo impede que o Brasil seja capitalista porque dificulta o crédito a quem produz e a quem consome, por causa das altas taxas de juros. (…) Quero dinamizar a economia. O primeiro passo é fazer o Brasil crescer no mercado interno e externo. (…) Os empresários deveriam votar em mim porque somente eu sou capaz de fazer a economia voltar a crescer neste momento. (…)”. Tampouco importa que inclua em suas fileiras políticos tradicionais vinculados ao catolicismo conservador e à agroexportação como Geraldo Alckmin, e busque assegurar apoio reunindo-se com setores do grande capital como Josué Gomes, presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP); Isaac José Sidney, diretor da Federação Brasileira dos Bancos (FEBRABAN); Benjamin Steinbruch, diretor do Conselho de Administração da Companhia Siderúrgica Nacional; Flávio Gurgel Rocha, presidente da gigante têxtil Lojas Riachuelo e integrante do maior grupo de empresários têxteis da América Latina, o Grupo Guararapes; e outro longo etcétera. Enfim, vale tudo desde que o “fascista” seja arrancado da gestão governamental. Tudo se reduz a malabarismos políticos, deixando de lado as relações econômicas, especialmente aquelas que mantêm sua população trabalhadora em condições de crescente exploração. Essas organizações separam o Estado da dinâmica do capital e não compreendem categorias como totalidade.

O primeiro elemento dessa falsa contradição radica em transpor de forma mecânica uma categoria que sintetizava um processo histórico diferente e específico para o atual ascenso da extrema-direita no mundo. Mas mesmo considerando que essa transposição tenha algo de credibilidade, a experiência real do movimento operário provou à exaustão que a luta contra o fascismo não pode ser realizada sem uma luta contra o capitalismo em geral. Contrapor o fascismo com os valores e formas econômicas e políticas liberais implica negar sua unidade orgânica como dois momentos no desenvolvimento do capital.

No Brasil existe uma clara continuidade entre a política econômica do PT e a executada por Bolsonaro. Para dar alguns exemplos, a produção de soja, a commodity mais importante do Brasil, teve seu maior salto nos governos petistas com um crescimento contínuo de 51.919.440 toneladas em 2003 para 96.394.820 em 2016 (segundo a FAO). Enquanto os hectares de produção de soja de 2006 a 2016 aumentaram de 22,04 milhões para 33,15 milhões (segundo a FAO). A produção total de grãos para agroexportação entre 1975 e 2017, que foi de 38 milhões de toneladas, cresceu mais de 6 vezes, chegando a 236 milhões, despontando principalmente nos governos petistas (segundo a EMBRAPA). Ou seja, houve um crescimento quase contínuo das exportações agrícolas nos governos petistas. No governo Lula inclusive, houve maior participação dos setores da indústria no PIB com 23,1% em 2011 enquanto no governo Bolsonaro foi reduzida para 18,9% em 2021 (segundo o IBGE). Se a oposição entre fascismo e democracia deve ser descartada, é ainda mais insustentável pensar em uma dissociação radical entre dois governos que, fundamentalmente, mantiveram o mesmo programa econômico em benefício do agronegócio, do capital financeiro e da burguesia industrial. A esquerda e o progressismo fecham os olhos para os fatos e caem presas fáceis das aparentes diferenças que existem entre Lula e Bolsonaro. A infame retórica e cretinismo deste último, o caráter rançoso da extrema direita, não é mais do que uma estratégia para capitalizar o descontentamento dos trabalhadores frente às limitações do “socialismo do século XXI”, que caracterizou a experiência petista.

Se admitimos que as diferenças entre os dois principais candidatos não são essenciais, pareceria sensato para os trabalhadores optarem por uma “verdadeira opção de esquerda” no processo eleitoral. De fato, nas eleições brasileiras abunda essa fauna eleitoral. Tentando se distinguir do “lulo-petismo” encontramos as candidaturas do Partido Comunista Brasileiro (PCB), da Unidade Popular (UP) e do Pólo Socialista Revolucionário (PSR). Essas organizações, para além de suas nuances, não parecem ter um objetivo maior do que substituir eleitoralmente o PT e executar, a partir do acesso à máquina estatal, medidas aparentemente progressistas para os trabalhadores. Suas práticas, tão limitadas, como seus sonhos de cumprir as chamadas “tarefas democrático-burguesas” se justificariam porque o PT não teria realizado transformações substanciais “traindo” os trabalhadores. No final, trata-se de virar o rei (capital) de cabeça para baixo, não cortar sua cabeça.

O que subjaz a esse tipo de intervenção política, por mais que se afirme repetidamente que obedece a mediações táticas, é uma confiança ingênua nos mecanismos institucionais. Uma fé imaculada na possibilidade de reformar o irreformável ou de consolidar ganhos que gradualmente modifiquem a balança em favor dos trabalhadores. O questionamento do caráter de classe, do capital e do Estado, tão caro ao comunismo, ao qual muitas dessas organizações se atribuem, é notável pela sua ausência. Eles guardaram O Manifesto Comunista na gaveta até o final do processo eleitoral.

É habitual que a priorização da disputa institucional esteja motivada pelo oportunismo político e pela obtenção de benefícios econômicos brindados pelo acesso à gestão do aparelho estatal. Contudo, no caso de muitas organizações que se reivindicam de esquerda, essa opção “tática” costuma ser motivada por uma avaliação equivocada do momento histórico e das reais possibilidades de atuação dentro do Estado. Em meio a um processo de decadência social, econômica e política generalizada em nível global, conflitos armados com a participação dos principais blocos imperialistas e uma crise de superacumulação sem solução à vista, chama a atenção que os setores que deveriam liderar a luta contra o capitalismo não tenham nada mais a oferecer aos trabalhadores do que ir votar na chamada “verdadeira esquerda”. Ainda que encham a boca de slogans grandiloquentes como “poder popular” ou “socialismo”, na verdade incorrem na afirmação do capital e de suas formas políticas. No contexto brasileiro, essa posição é ainda mais deplorável. Que democracia vão defender os milhões de proletários que sempre sofreram com um estado de exceção permanente nas favelas?

Não deverá surpreender, então, que as massas ultrapassem os partidos e sindicatos, como aconteceu nas manifestações de 2013, quando durante a gestão petista liderada por Dilma Rousseff, milhões de trabalhadores irromperam no meio das disputas interburguesas, tornando-se claro que a única contradição fundamental e real é a contradição capital-trabalho. Nesse contexto, enquanto o grosso da esquerda recuava em favor do governo petista, o espírito radical dos trabalhadores foi capitalizado pela demagogia direitista. Em outras palavras, a monstruosidade de Bolsonaro nada mais é do que o resultado da defesa ingênua das instituições burguesas praticada por esses setores eleitorais presos nas redes democráticas. É a dialética do capital na política que só muda seus representantes. Surpreende que, mesmo depois dessas experiências, os grupamentos que se identificam com os interesses do proletariado não possam ir para além da crítica ao PT. Esta, ainda que fundamental, é insuficiente.

O parlamentarismo nas condições atuais não tem outro papel senão o de reduzir o trabalho militante a um apêndice da dinâmica eleitoral. Dinâmica democrática indissociável do interesse capitalista e das exigências de valorização do valor. Subordina as energias dos militantes honestos ao rumo infrutífero do jogo institucional, no qual a burguesia sempre dá as cartas. Impede o reconhecimento da dominação de classe porque se apresenta como uma opção para melhorar algo sem ir à raiz dos problemas. Mudança de aparência, mas não de essência.

A pergunta cai pelo seu próprio peso: o que fazer? Ser revolucionário significa compreender-se como um momento do movimento real da classe, colaborando com seu auto-esclarecimento e seus processos de luta, ou seja, concorrendo na ação coletiva do proletariado em defesa de seus interesses de classe de forma irrestrita. Nas condições atuais, isso implica ir para além das armadilhas democráticas burguesas, agitando por uma posição abstencionista no processo eleitoral, pois nem a esquerda reformista, nem os críticos, muito menos a extrema direita, significam uma ação no sentido de negar radicalmente a capitalista de dominação. São, portanto, um obstáculo ao desenvolvimento da consciência do proletariado e de seu papel revolucionário na atual crise capitalista. Nosso slogan é, portanto, a autoemancipação do proletariado através de um processo revolucionário que vá além das armadilhas democráticas da burguesia.

Editorial Ande, Peru. 1º de outubro de 2022

Traduzido e divulgado no Brasil por Iniciativa Revolução Universal: revolucaouniversal@protonmail.com // revuniv@protonmail.com

Notas acerca da farsa eleitoral: anarquistas votam em Lula?

Fonte: https://amanajeanarquista.blogspot.com/2022/09/notas-acerca-da-farsa-eleitoral.html

Introdução

Nas vésperas das eleições brasileiras, a revista Jacobin resolveu publicar um Manifesto intitulado Anarquistas em defesa do voto em Lula, de autoria dos Anarquistas mascarados, um grupo de anarquistas que resolveu se manter anônimo por medo de represálias.

Ficamos sempre curiosos como nas vésperas das eleições sempre aparecem esses anarquistas bem intencionados que querem explicar como estivemos sempre errados em nossas posições ou como somos coniventes com o assassinato de tal ou qual minoria por não votar. O linguajar é sempre o mesmo e o objetivo também é sempre o mesmo.

Embora a polarização presente na política brasileira tenha conseguido enquadrar a classe trabalhadora em duas alternativas dentro do mesmo sistema, coisa que já era prevista, os anarquistas permanece em sua grande maioria aquém disso. Obviamente, a importância do anarquismo não está em seu aspecto quantitativo (coisa que esses tipos de texto sempre parecem buscar reforçar), mas em uma diferença qualitativa por conta da prática anarquista de oposição à farsa eleitoral e portanto a essa própria repolarização em diferentes frações burguesas. Consideramos ser esse o motivo do reaparecimento desses textos em todas as eleições.

Decidimos realizar uma réplica que busca ser breve, da mesma forma que o Manifesto, já que consideramos que nossas posições já foram muito mais desenvolvidas através das traduções que realizamos e publicamos, além do público-alvo desse tipo de material.

O abstencionismo revolucionário como arma de luta dos explorados

Desde logo, ao contrário do que propõe o Manifesto, não consideramos a defesa da abstenção revolucionária como a defesa de um solo improdutivo ou como um fator que enfraquece nossa potência por si só. A defesa da abstenção já foi amplamente discutida por teóricos do movimento anarquista e não achamos que aqui é o espaço para retomar suas proposições, mas buscaremos explicá-la a partir de nossas concepções.

Primeiramente, é preciso entender que os anarquistas não defendem a abstenção pura e simplesmente, mas sim uma abstenção fruto do desenvolvimento da consciência revolucionária de como funcionam as relações de poder no mundo capitalista. Não se trata simplesmente de não votar porque nenhum candidato lhe agrada, mas de não votar por entender a ineficácia dessa ação para a luta contra a propriedade privada e o Estado, por exemplo.

Da mesma forma, os anarquistas não equivalem os diversos candidatos. Todos possuem suas diferenças e entendemos isso, porém é justamente por entendermos que a ação no Estado e o voto se encontram no terreno de classe da burguesia que entendemos que eles apenas representam interesses de diferentes frações da mesma. No fim das contas, todos eles estão dispostos a defender a propriedade privada, o controle nos locais de trabalho e a existência da polícia e do exército para reprimir qualquer tipo de revolta que aconteça nesse território. Por isso, a crítica aos anarquistas como “aliados fracos” cai por terra quando se analisa esse mesmo terreno de classe. Somos fracos para quê? Do ponto de vista de quem? Se somos fracos para defender os interesses burgueses que estão financiando o PT (Partido dos Trabalhadores) de que posição partimos ao realizar essa crítica? Acreditamos que do ponto de vista anarquista e da classe trabalhadora, que continuará sendo explorada e reprimida no governo petista, o PT também é um aliado fraco na defesa de seus interesses.

Por um lado, temos a luta no terreno da classe trabalhadora, que se dá com as armas da própria: greves, expropriação, sabotagem, entre outros exemplos de associação proletária; por outro, temos a luta no terreno burguês, utilizando as ferramentas e métodos legitimados pela ordem vigente: mudança de uma liderança estatal pela outra, com toda a estrutura permanecendo mais ou menos inalterada, como exemplo de atomização cidadã e negação da força coletiva da classe. Tudo é aceito através da noção de “mal menor”, tudo no sistema capitalista anteriormente criticado é reabilitado pela necessidade de derrotar Bolsonaro. É por isso que não consideramos o ato de votar como algo momentâneo e individual, como propõe aqueles que buscam justificá-lo de um ponto de vista imediatista, mas sim como uma ação baseada em certas premissas e que legitima todo o sistema capitalista.

De uma maneira menos imediatista, a mobilização para a defesa das instituições burguesas também realiza a redução do proletariado a simples engrenagem do capital, reafirmando, renovando e desenvolvendo esse, negando a própria potência dos proletários (pela negação de seus próprios métodos de combate e de sua contraposição ao modo de produção capitalista) e afirmando sua reprodução enquanto capital variável – parte do capital (Grupo Comunista Internacionalista, 2008). A mobilização para essa negação negativa semeia a confusão no meio da classe, ao travestir como interesses seus aqueles de outros. Como colocado por Malatesta:

Se existem classes e indivíduos que são privados dos meios de produção e, consequentemente, dependentes de outros com o monopólio sobre esses meios, o assim chamado sistema democrático pode ser somente uma mentira, que serve para enganar as massas do povo e mantê-las dóceis com um aspecto externo de soberania, enquanto o governo da classe privilegiada e dominante está de fato sendo salvaguardado e consolidado. De tal maneira é a democracia e de tal maneira tem sido sempre na estrutura capitalista, seja qual for a forma que assuma, da monarquia constitucional ao assim chamado governo direto. (Nem democratas, nem ditadores: anarquistas, 1926).

Portanto, nós anarquistas não temos medo de ficar isolados de outros grupos, não quando esses grupos são grupos que defendem a sociedade capitalista. Também não temos medo de nadar a contracorrente. Numa época em que a contrarrevolução impera, sujeitar-se ao pensamento dominante no seio da classe trabalhadora seria sucumbir ao pragmatismo e às concepções contrarrevolucionárias presentes. Ao contrário disso, os anarquistas precisam defender intransigentemente seu programa, como forma de preservar o fio histórico que nos conecta como classe em luta às nossas outras experiências, preservando seus ensinamentos históricos, e também como forma de referencial para ações mais combativas.

Como veremos a seguir, ao observarmos nossas experiências históricas enquanto classe e os ensinamentos legados por essas, percebemos que a propaganda eleitoral não atua em defesa dos interesses da classe trabalhadora, nem é a eleição de personagens de esquerda que o faz. Usaremos o mesmo exemplo da Espanha de 1936 citado no Manifesto para ilustrar essa questão.

O apelo à tradição … reformista

Apesar de sua crítica a um suposto tradicionalismo anarquista, o texto não hesita em tentar criar sua própria tradição dentro do anarquismo, apelando a eventos históricos para afirmar uma tradição reformista dentro desse. O apelo a um evento histórico nada mais faz do que dar premissa para que outros tipos de prática sejam justificadas no corpo teórico e prático do anarquismo por “já terem ocorrido”.

O que sempre deve ser avaliado é primeiramente o conteúdo dessas ações. Dessa forma, e como já falamos acima, a posição partidária de alguns anarquistas não é só a prática anarquista tomando uma forma partidária, mas é carregada de uma série de implicações anteriores e posteriores. Ou seja: a aceitação do mal menor, a abdicação da análise do papel do Estado no sistema capitalista, a conciliação interclassista, o conteúdo é a própria negação da prática anarquista e do terreno de classe em favor da preservação da sociedade capitalista. Consideramos essa uma forma muito melhor de proceder na avaliação das formas e conteúdos que nossa luta incarna do que a maneira feita pelo Manifesto.

Aqui citam o período espanhol que vai de 1931 até 1936. Vejamos o que dizem.

O Manifesto coloca a culpa da abstenção e da derrota do governo de coalizão republicano-socialista nas costas dos anarquistas, mas será que foi só isso? Se a segunda república espanhola era tão boa com os camponeses e trabalhadores, temos de nos perguntar como os anarquistas conseguiram tamanha influência para fazer esses se absterem de votarem em favor de algo que só lhes trazia benesses.

Como Leval (1975) coloca, o segundo período da Segunda República espanhola foi uma consequência do primeiro. A Segunda República não apenas estava disposta a utilizar a guarda civil para reprimir as ocupações em terras incultivadas, até mesmo atirando contra camponeses, mas também contra greves de trabalhadores. A tragédia de Casas Viejas é um episódio que deve ser resgatado em nossas memórias.

Obviamente, esse não foi um caso isolado. Como coloca Jaime Bailus (1978), o primeiro conflito entre os trabalhadores e a República já foi encontrado com uma chuva de balas, em favor do capital norte-americano. Este foi o caso da greve da Telefônica, em 1931. Como colocado por Miquel Rigo (2011), o ministro de interior da República não hesitou em utilizar todos os meios disponíveis para reprimir os grevistas, disparando contra os operários sem aviso prévio. Como colocado no mesmo texto: “a República da ilusão começava a tornar-se “realista”” (tradução nossa).

Além disso, e como explicitado pelos episódios de luta acima mencionados, como Leval (1975) mesmo complementa, os camponeses e trabalhadores que antes, na monarquia, comiam pouco mais que pão e usavam sandálias continuaram na mesma situação na Segunda República. Esses foram alguns dos motivos que realmente levaram à derrota dos socialistas-republicanos nas eleições de 1933.

Levando isso em conta, é incompreensível ver anarquistas colocando a culpa em outros anarquistas, ou mesmo em trabalhadores e camponeses, pela derrota da coalizão republicano-socialista nas eleições. Isso soa como as acusações que hoje em dia mesmo verificamos contra o anarquismo como a força secreta que causa a derrota da esquerda, mesmo quando por outro lado dizem que somos incapazes de realizar qualquer ação social em nível maior que o local.

Sobre Malatesta

Por fim, gostaríamos de responder a um ponto específico do texto, que é a citação de Malatesta. Entendemos a atividade teórica de militantes comunistas e anarquistas como a tentativa de “expressar teoricamente a prática comunista de ruptura com a sociedade capitalista inteira” (Theses of Programmatical Orientation, Grupo Comunista Internacionalista, tradução nossa), dessa forma o programa comunista e anarquista não é de propriedade de nenhum de seus militantes em particular, mesmo sendo a herança de todos. Assim, contribuímos com as formulações e teorizações cada vez mais condizentes com a real prática de ruptura com essa sociedade, não tendo nenhum valor de autoridade como militantes mais ou menos conhecidos. Dizemos tudo isso porque para nós não importa se Malatesta disse isso ou aquilo, mas sim a validez de suas posições para uma ação de ruptura com o capitalismo.

Dito isso, ainda achamos importante trazer algumas contribuições de Malatesta a respeito da democracia, com intuíto de melhor informar possíveis leitores desse manifesto de que Malatesta ao longo de sua vida, desde sua fase mais atrelada à Internacional (fase jovem) até sua fase mais madura, foi um arduo defensor da anarquia como contraposição à democracia e à ditadura como sistemas de governo capitalistas. Seguiremos com alguns trechos de materiais que situam as teorizações de Malatesta no terreno de nossa classe, em contraposição com a defesa da democracia ou da tomada de lados nos conflitos intraburgueses.

Um legalista, no melhor dos casos, vê o sufrágio universal como um ganho que pode dar um grande impulso ao partido socialista; enquanto eu acredito ser a melhor maneira que a burguesia tem para alegremente oprimir e explorar o povo. Ele vê o sufrágio universal como o primeiro passo na direção da emancipação; eu vejo como o segredo para fazer o escravo firmar suas próprias correntes e uma garantia contra a revolta, fazendo o escravo pensar que ele é o mestre.

Então como você nos veria unidos? Enquanto ele estará fazendo campanha para garantir tais direitos ao voto e, quando os conseguir, para persuadir o povo a usá-lo, eu estarei me esforçando para prevenir que tais direitos sejam concedidos ou, se forem, para garantir que as urnas eleitorais estejam vazias e sejam vistas com desprezo. (Queridos companheiros do Ilota, 1883, tradução nossa).

Estamos contra a classe burguesa, colocamo-nos contra e fora do Estado — e incitamos os trabalhadores a fazerem outro tanto — tanto na paz quanto na guerra.

Os socialistas democráticos, que enquanto dizem querer revolucionar toda a ordem capitalista fazem obra de conservação social, procurando tornar mais suportável e mais suportado o estado de coisas atual, ou melhor, procurando fazer esperar que novas leis possam reparar os males mais gritantes, podem pois interessar-se pelas relações com os Estados estrangeiros […]. Os republicanos, que em vez de pensarem em fazer a república ocupam-se de moralizar a monarquia […] podem tomar partido pela tripla aliança ou o triplo acordo, e preocupar-se com a força e o prestígio da Itália. Socialistas e republicanos aspiram a ir para o poder — alguns talvez com a monarquia — e é natural que se exercitem nas artes do homem de Estado.

Mas nós, que queremos verdadeiramente derrubar o atual sistema social, nós que não nos contentamos com simples melhorias, que acreditamos que essas limitadas melhorias que o sistema capitalista poderia conceder sem se negar a si mesmo não serão obtidas, ou não serão úteis nem eficazes, se não forem arrancadas pela resistência e pela ameaça do proletariado em luta contra os patrões — nós não podemos ter qualquer relação voluntária com o Estado, e dele não nos ocupamos a não ser na medida em que lhe pudermos minar a força e a existência. (A nossa política estrangeira, 1914).

É suficiente pensar no que fizeram os socialistas e comunistas quando chegaram ao poder, quer traindo seus princípios e seus camaradas, quer hasteando cores em nome do socialismo e do comunismo.

É por isto que não somos nem a favor do governo duma maioria, nem do duma minoria; nem pela democracia nem pela ditadura.

Somos a favor da abolição do gendarme. Somos a favor da liberdade de todos e do livre acordo, que estará aí para todos quando ninguém tenha os meios para forçar os outros, e todos estejam envolvidos na contribuição da sociedade. Somos a favor da anarquia. (Nem democratas, nem ditadores: anarquistas, 1926).

This entry was posted in Activity of the group - Other languages, Other languages, Português. Bookmark the permalink.

Comments are closed.