Filhos da invasão
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by Joaquim Trigo de Negreiros

Ivan não se lembra. E ainda bem que não se pode lembrar. Tinha só um mês de idade quando o pai deixou à pressa a pequena casa de Matebian e fugiu para o mato, assustado com a rápida aproximação dos soldados indonésios. O bebé nascido a 9 de Novembro de 1975 ficou com a mãe e o irmão de cinco anos. Passados uns dias, o pai quis voltar. Não sabia que os militares já lhe rondavam a casa. Apanharam-no e mataram-no. Ao pai e ao irmão de cinco anos. Na pequena casa de Matebian ficaram Ivan e a mãe, que os soldados tentaram violar. E que um dia lhe contou tudo.

Denis, nascido em Janeiro de 1975, estava prestes a completar um ano de idade quando se deu a invasão. Mas não foi aí que começaram os problemas naquela pacata família de Lospalos. O pai, um português que fez a tropa em Timor em meados dos anos sessenta, casou com uma rapariga de Ermera e acabou por ficar, não era propriamente um militante político. Havia no entanto, quem já o tivesse ouvido defender a UDT. Uma simpatia fatal, intolerável aos olhos dos vencedores da rápida e crua guerra civil que precedeu a invasão. Foi preso pela Fretilin, andou por cadeias e campos de trabalho, a mulher aflita sem saber dele.

Por fim, quando as coisas acalmaram, a vida lá se compôs. Na sala do pequeno apartamento no bairro da Belavista, em Setúbal onde hoje vive com os pais‹o irmão mais velho está na Austrália ‹, Denis puxa pela cabeça e é aí que a sua memória chega: vê a família já depois da mudança para Díli, em oitenta, oitenta e poucos, tinha ele uns cinco ou seis anos.

O cenário é tranquilo. O pai, que antes já trabalhara no departamento de agricultura da administração colonial, voltara a ter um emprego semelhante, agora a serviço das autoridades indonésias. "Trabalhava para o Estado", recorda Denis.

As aulas em bahasa na escola indonésia, português para falar com pai, tetum com a mãe. Uma infância em três línguas numa cidade quase normal: "A guerra era no mato".

Quase, porque cada vez que Denis de lembra de Díli volta a ouvir o barulho dos tanques e as recomendações para não sair à noite porque os soldados indonésios "pegam nos timorenses mais pequenitos e obrigam-nos a fazer de criados".

Na memória ficou-lhe ainda gravado um único contacto directo com a guerrilha. "lamos a caminho de Ermera, a terra da minha mãe quando apareceram uns timorenses vindos do mato, de barba e assim, a pedir-nos cigarros".

O que para Denis foi uma experiência estranha e fortuita já não tinha, naquela altura, segredos para o pequeno Ivan. Depois da chacina de Matebian, a mãe também tomou o caminho de Díli. Ivan guarda uma imagem do trajecto, num camião militar. Tudo por causa de um oficial indonésio transferido para a capital‹"um comandante de bom coração"‹que quis trazer consigo a eximia cozinheira de Matebian. E assim Ivan foi parar ao Externato São José, "escola funda dora da política".

Foi aí, a acompanhar as reuniões nocturnas na escola ou em casa dos colegas mais velhos, orgulhosos militantes da União da Juventude de Timor-Leste, que Ivan se habituou a ouvir as palavras "independência", "liberdade", "resistência". Assim mesmo, em português, como as aulas no Externato entretanto encerrado pelos indonésios.

Aos mais pequenos, como Ivan, competia arranjar roupa, sapatos e remédios que outros levavam para o mato, para os barbudos que um dia se cruzaram no caminho de Denis. Um dia Ivan recebeu instruções diferentes. Em vez de roupas era preciso arranjar pano e tinta. Rapidamente. Dias depois, teve o seu baptismo nas ruas, na manifestação preparada pelos jovens independentistas para receber o Papa. A repressão foi dura e Ivan sentiu medo. Medo e excitação. Mais tarde, quando soube que a visita da delegação parlamentar portuguesa ao território tinha sido cancelada incorporou outro sentimento familiar aos jovens da frente clandestina: frustração.

Voltou a enfrentar as forças de segurança em frente ao hotel Turismo, onde gritou com os outros para chamar a atenção dos diplomatas e jornalistas estrangeiros que ali se encontravam e, através deles, "fazer o mundo saber". Houve muitas detenções, mas Ivan escapou.

Entretanto, o Externato de São José foi fechado e as coisas tornaram-se ainda mais difíceis. Ivan continuou a estudar, mas em bahasa e numa escola "cheia de 'pides' dos 'bapas' [militares indonésios]". As reuniões foram transferidas para a casa de um colega longe do centro da cidade. Apesar das dificuldades, um novo plano começou a ganhar forma. O passo seguinte será Santa Cruz.

Enquanto viveu em Timor, Denis nunca deu por toda esta actividade. Tinha uns primos a estudar no Externato São José‹um deles estaria mais tarde em Santa Cruz ‹mas ignorava as reuniões nocturnas. A palavra "resistência" não lhe dizia nada. Mas tantos soldados nas ruas faziam-lhe impressão: "Não se podia sair à noite nem dormir sossegado".

Talvez misture as suas próprias memórias com o que ouviu dos país, que, em 1984, decidiram que aquilo não era vida e embarcaram para Portugal.

Casa em Setúbal, o pai na luta por um lugar na função pública, a mãe a adaptar-se a um mundo novo e Denis numa turma onde era a único timorense. Os colegas pensavam que tinha vindo de África. Um ou outro perguntava-lhe onde era Timor, sem grande interesse pela resposta. Até ao dia 12 de Novembro de 1991.
Ivan lembra-se bem de cada minuto desse dia. Fala da missa na Igreja de Motael, da caminhada até ao cemitério de Santa Cruz, dos tiros, das crianças a chorar, do irmão que "levou uma bala que ainda não saiu", do refúgio na residência do bispo, da ajuda da Cruz Vermelha para chegar a casa, da mãe a chorar e a rezar com velas acesas, da fuga dois dias depois para longe de Díli.

Denis recorda as imagens na televisão. "Fiquei chocado, senti um ódio, um ódio enorme". Na escola de Setúbal, toda a gente passa a querer saber de Timor-Leste. Denis é solicitado para explicar o que se passa. Há exposições, debates, aulas especiais. Já ninguém pensa que ele veio de África. E Ivan também sente a sua origem com mais força. Passa a ser presença constante em manifestações e vigílias. Percebe que as diferenças partidárias que tantos problemas causaram a seu pai não contam para os jovens timorenses em Portugal, que estão "todos por uma causa". Envolve-se. E mantém-se envolvido, mesmo quando, na escola, sente que a onda de interesse por Timor esmorece com o tempo.

Com o passar dos dias, Ivan sente que pode voltar a Dili. Reencontra companheiros da resistência e volta a estudar. Até Março deste ano, quando uma nova onda de manifestações o afasta da escola. Não voltará às aulas em bahasa. Está na "grande intifada" de Setembro e Outubro e no dia 2 de Novembro encontra-se com sete amigos numa praia de Dili. Dois dias depois estão no barco para Jacarta, onde chegam a sete. Nesse mesmo dia entram na embaixada da Holanda e pedem asilo político. No dia 9, Ivan ouve os parabéns pelos vinte anos no avião que voa para Lisboa.

Para Denis, que acabou a tropa e estuda à noite, esse foi mais um dia para pensar na dificuldade de arranjar o primeiro emprego, Se isto continuar assim, é capaz de ir para a Austrália, onde está o irmão. Porque ele está bem. E porque ficaria mais perto de Timor, onde, "se houver estabilidade", talvez ainda vá viver um dia. Uma possibilidade que Denis encara com um ar sério.

Para Ivan, é uma certeza com um sorriso.